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Pequenas neuroses contemporâneas

Opinião|Existe

Atualização:

Hoje tem novidade na minha peça A NOITE MAIS FRIA DO ANO [todas as terças e quartas, às 21h, no ESPAÇO PARLAPATÕES]. É que mudei o texto. Como assim?! A peça estreou em fevereiro, você não pode fazer isso!

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Posso, sim. Posso tudo. Sou o autor e diretor. E folgado. Eu quem mando. Eu inventei, eu desinvento. Enxuguei uma cena. Tivemos até um ensaio para marcá-la. Uma cena que derrubava o ritmo da peça. Que estava longa [quase 1h50].

Comédia é assim. No papel, dá 1h30 de peça. No palco, vai pra quase 2 horas. Porque o riso muda o timing da cena. Os atores, durante a temporada, sacam quando ele virá. Preparam a fala, como um piloto taxiando na pista de decolagem. Curtem dominar a platéia, jogar com ela. Capricham na piada. Apesar de eu instruir para focarem no texto, não no público. Aliás, maldosamente, enxuguei uma das cenas mais engraçadas da peça.

E A NOITE MAIS FRIA DO ANO, apesar de ser uma dolorida história de amor não completado, é comédia. Feita por 4 atores que conhecem o gênero, gostam de jogar com o público, caqueiam à vontade, dominam o palco com facilidade.

Sou assim, esquisito, ou impulsivo, mudo as minhas peças durante a temporada. Enxugo. Mudo falas. Sugiro cacos. Da minha peça E AÍ, COMEU?, mudei até o título; fora do Rio de Janeiro, ela é DA BOCA PRA FORA.

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Na minha peça MAIS-QUE-IMPERFEITO, mudei o final meses depois da estreia- um personagem morria na temporada carioca e viajava na temporada paulista.

A peça NO RETROVISOR teve uma cena escrita num guardanapo de bar, no dia da estreia, depois de meses de ensaio. E na temporada ganhou cortes e uma cena introdutória que mudava toda sessão e era improvisada em cima de um eixo.

Falo disso nessa boa entrevista para o Guia da Folha: http://guia.folha.com.br:80/teatro/ult10053u577902.shtml

Bem, não sei se você sabe, mas todos os meus livros anteriores a MALU DE BICICLETA foram reeditados e reescritos, quer dizer, enxugados. Simples, a Editora Objetiva comprou meus livros editados por outras editoras, redigitalizou, me mandou os arquivos, e, metido, passei um ano enxugando e mexendo.

BLECAUTE, UA:BRARI, BALA NA AGULHA, AS FÊMEAS e NÃO ÉS TU, BRASIL publicados pela Objetiva são diferentes dos anteriores publicados pela Brasiliense, Siciliano e ARX.

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Em BALA NA AGULHA, mudei um capítulo de incesto. Deixei mais sugerido. De NÃO ÉS TU, BRASIL, cortei mais de 40 páginas. Até FELIZ ANO VELHO cortei.

A pergunta não é "por que faço isso?", mas "por que não?", já que tenho domínio jurídico e estético sobre a minha obra. E, lembre-se, Euclides da Cunha mudou 3 vezes OS SERTÕES, incluindo, na última edição, a que ficou para a posteridade e ganhou o status de o maior livro da literatura brasileira, numa lista com especialistas elaborada pelo caderno MAIS, um mea-culpa que até mudava o sentido da obra.

Enquanto eu estiver vivo, meu caro, minha obra está viva.

*

Tem neguinho que reclama de tudo. Estou sem postar desde sexta. E apareceram alguns coments chiando. Eu, um novato na blogosfera, já tinha sido alertado sobre aqueles que reclamam quando não se posta. O que é, vão me denunciar no Procon?

O leitor de um blog se sente um consumidor. E faz exigências. Bom isso. É uma mídia relativamente nova, mas que cria alguns padrões. Um deles é a intimidade entre blogueiros e leitores.

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Estive na Feira do Livro de Ribeirão Preto. Passei uns dias lá. Falei no exuberante Teatro Pedro II. Reencontrei o grande poeta Thiago de Mello, que, apesar de morar a 400 km de Manaus, está por dentro de tudo, e acompanha o futebol, tema do nosso papo.

Ele contou que, na primeira contusão grave do Ronaldo, foi visitá-lo no hospital, em Paris, e disse, para um jogador no leito, desanimado: "Os pássaros da Amazônia dizem que você vai voltar e vai ganhar a Copa do Mundo."

Dito e feito. Ronaldo vive contando essa história por aí. Nem conhecia o poeta, mas acreditou. Esqueci de perguntar ao Thiago o que os pássaros da Amazônia dizem sobre o jogo de amanhã.

Bebi o "fantástico", chope só com espumas, do Pinguin. Revi amigos. Passei o domingo na praça. Até raspadinha com groselha bebi- há décadas que eu não bebia. Vi poetas locais recitarem. Palhaços mexerem com os pedestres. Sob o sol e o calor da Califórnia brasileira.

Fui sábado de manhã de carro, sozinho, com o Ipod no shuffle. Saí de São Paulo cedo. Estava frio e nublado. Peguei a Bandeirantes. Costumo ir devagar, de janela aberta, curtindo a vista.

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Lá pelo quilômetro 80, começa a me dar uma palpitação. O sol surpreendentemente aparece. Naquela área, sempre está sol. Foi onde, há 30 anos, num dique, mergulhei e quebrei a quinta vértebra cervical, o que mudou radicalmente a minha vida.

O sítio em que mergulhei fica na beira da estrada. Toda a vez que passo por lá, dá um nó no meu cérebro. No ano passado, a caminho de uma palestra para a Universidade Federal de São Carlos, fundiu o motor do meu carro exatamente ao lado do maldito laguinho. Voltei guinchado.

Aquele trecho do mundo é amaldiçoado. Estranhamente, um bairro surgiu ao redor e outro em frente. Mas o desgraçado do sítio está lá, intacto.

Coincidentemente, tocava There There [Radiohead], no som: "... just'cause you fell it, doesn't mean is there" (só porque você sente, não quer dizer que exista).

Passo a viagem com pensamentos atropelados: e se não tivesse acontecido, onde eu estaria, o que estaria fazendo, como eu seria?

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Então, me lembro de cada passo, cada pessoa que conheci, amei, penso nos amigos que eu não teria conhecido se não tivesse acontecido, nas viagens, na vida que arrumei para mim, e me acalmo pouco a pouco. Sentiria muita saudade de tudo isso, se não tivesse ocorrido. Não direi que bom que me aconteceu. Porque, estranhamente, apesar de tudo, encontrei felicidade no drama que vivi. Muita.

"Decreta-se que nada será obrigado nem proibido, tudo será permitido, inclusive brincar com os rinocerontes e caminhar pelas tardes com uma imensa begônia na lapela. Só uma coisa fica proibida: amar sem amor" [Thiago de Mello]

Opinião por Marcelo Rubens Paiva
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