PUBLICIDADE

EXCLUSIVO PARA ASSINANTES
Foto do(a) coluna

Pequenas neuroses contemporâneas

Opinião|Elas...

I

Atualização:

Segue. Mas antes abre a janela. Ouvi por debaixo da barba. Nós estávamos juntos há 36 anos. Que mania de acender a luz de manhã. Isso sim é imperdoável. Eu não queria mais ir em frente. Termina. Terminar era o fim. Fala mais. Eu quero dormir um pouco. Não dá tempo. Ele tinha razão. Abri uma fresta. Desisti. O dia não entrou. Era um vácuo. O quarto sairia pela janela se eu fosse em frente. No reflexo do vidro pude me ver. Várzea. Foi a palavra que me veio. Sempre fui varzeana dentro daquela aristocracia. Aquela natureza morta na parede do quarto da fazenda sempre me incomodou. Preferia meu bom e velho extinto pôster do Jules et Jim. Nua e com o pingo que me restava de pudor olhei a minha bunda pelo espelho. Eu ainda tinha uma bunda linda. Que mania de ficar olhando esse rabo. Vem aqui. Me abraça. Ele sempre fazia isso. Reagia naturalmente a toda e qualquer tragédia. Você quer que eu continue mesmo? Deixa pra lá. Não tem mais. Eu quero. Segue. No limite. Eu recomecei. Nem sempre gostei de ouvir minha voz. Minha voz tem uma falha na partida. Chega largada. Lânguida. Chega com uma fragilidade austera assustadora às vezes. Aquele tipo de autoridade fraca a qual os bichos zombam e não obedecem. Mas às vezes em compensação sai com um excitamento tão involuntário que é até divertido. Algo que acontece assim ao fazer coisas prosaicas como falar com o porteiro eletrônico de algum edifício. Eu vou no cento e vinte e cinco. Soa como estou sem calcinha e estou subindo. É estranho.

PUBLICIDADE

II

Aquele dia minha voz estava especialmente grave. Lembro do telefone tocando às 10 da manhã. Passa aqui. Lembro do calor. Dele de azul com o jornal na mão. Lembro de quase todas as vezes que passei nesse último mês na frente da casa dele. E da alegria de estar vendo que aquele homem de azul ali era ele. Lembro do abraço mais tranquilo. Lembro de dizer, eu? Eu tô tranquila. Lembro de perguntar coisas. De querer mais ouvir que falar. Dos óculos Ray Ban. Lembro de ouvir porque ele escolheu o tema do seu livro novo. Lembro dele perguntar onde estamos indo. Não sei a gente nunca sabe pra onde está indo. Lembro de resolver ir pra pracinha das árvores. Nossa rua sem saída. Nossa sombra e do volume dele na calça. Adoro esse homem, pensei. E o beijo. Antes o violão ali. Lembro de me contorcer toda pra tocar dentro do carro. Lembro de um carinho no braço e do beijo. Gostoso. Dos moleques que deviam estar vendo a nossa molecagem. Lembro dele dizendo que queria meter em mim. Difícil falar essa frase. Essa é melhor não. Lembro dele dizendo que queria sentir a minha boca. Minhas palavras. Isso. Lembro dele dizer que tinha saudade das minhas palavras. Lembro quase ao mesmo tempo do tesão e da ternura. Lembro um pouco do cheiro dele. O cheiro dele quase foge da minha lembrança. Mas é sempre um cheiro familiar. Lembro de suas palavras, de seu beijo e da sua ansiedade. Lembro de sentir. Ele gosta de mim. Lembro de decidir aqui não. Quero me deitar dessa vez. Dessa vez. Difícil essa expressão. Dessa vez determina todo um contexto anterior a essa vez. Mas, foi como foi dessa vez. Quero ir pra outro lugar. Então vamos! Vamos por dentro. Vamos pôr dentro? Por onde? Não sei, a gente nunca sabe pra onde está indo. Lembro de chegarmos a um acordo. Sem angústia. Mais um tango em Paris. Simples assim. Lembro dele elogiar minha poesia. Lembro dele pegar na direção. De me pedir pra ir beijando seu pau pelo caminho. Difícil essa frase também. É tudo tão rápido que sai assim sem censura. E a voz fala, e agora chega, mesmo com a falha na partida. Lembro dele dirigindo meu carro e quase batendo o meu carro umas cinco vezes. Lembro da gente rindo ao entrar no hotel. De errar a entrada. De dar a volta no quarteirão. Lembro de implorar pra moça da recepção deixar a gente entrar. Eu estava sem documento. Lembro de quase tudo. Lembro dele esquecendo o papel com o número do quarto no carro. De mim. Lembrando o número. Do estacionamento. Da aventura de achar o elevador. Das escadas. Dele rindo de mim. Você está engraçada! Eu estava decidida. Que quarto eu peço? O quarto. Pega o mais barato. Do quadro na parede. Uma mulher deitada de costas com o bumbum pra cima. De calcinha pequena. Cabelo Longo. A luz amarela entrando pela janela do banheiro. De mim. Tirando a roupa apoiada no batente da porta. Só de calcinha. Só de sutiã sem calcinha. A calcinha descendo devagar. Do bumbum empinado. Dele, já sem roupa, me olhando. O Quadro. O quarto. Sagrado é o lugar onde você está. Por que quanto mais profano o momento mais me vem a idéia de consagrá-lo? Lembro Dele de pé sem roupa e eu dizendo que estava quase honrada de estar ali naquelas circunstâncias. Lembro Dele me deitando de pernas abertas e me beijando. Lembro do beijo nas escadas. De dois homens num dos andares. E da gente rindo de uma piada que eu fiz. Se tu gostas de pau mole vou te levar a loucura. Lembro do telefone tocando sem parar. Eu pensando. O mundo está caindo lá fora e ele aqui comigo. Lembro que não chorei. Gozou? Só um pouquinho. Isso quer dizer. Ainda não. Ele de azul. Adoro ele de azul e de branco. Lembro que era segunda-feira. Era primavera. Dia 15 de setembro. Lembro dele e de como é sempre diferente. Lembro que ele me come. Dele quase gozando. Tirando. Mal agüentando. Lembro de mim. Encanada com a camisinha. Lembro de falar muito. Lembro de algum silêncio. Pouco. Lembro de uma ansiedade. Dele achando que broxou! Me lembro eu fui cruel e disse: bem feito! Na verdade, como nenhum homem nunca broxou comigo (verdade!) e ele me disse que nunca broxou, não sei, se aquilo de fato foi uma broxada. Prefiro ficar sem saber. Lembro de rir da ironia disso tudo. De pensar. Depois dessa, esse não é o último tango. Lembro dos corredores. Nunca sabemos pra onde estamos indo. Dos filmes do David Lynch. De dizer eu te amo. De ouvir eu também. Difícil essa frase também. Mais do que as outras. Lembro da luz branca do quarto se acendendo. De mim. Me olhando no espelho. De estar molhada. Dele passando o dedo. E dizendo. Você está molhada. Lembro dele falar da mulher na volta. Lembro que sonhei com ele. Lembro de contar que sonhei com ele. De dizer. Você terminava com a sua mulher. E estava com outra. Uma outra feia. Lembro dele rindo sem querer rir. Lembro de dizer. Fica com ela. Lembro de pensar. Por que falei isso? Você me inspira a escrever. Mas eu não quero mais escrever pra você. Lembro de dizer alguma bobagem sobre o presente. Mas não me lembro exatamente o quê. Do futuro falamos também. De talvez tomarmos chá um dia quando formos velhinhos. Rimos. Lembro que nesse dia meu gato sumiu. É assim, meu gato some, de repente! Gatos somem de repente. Deixam a gente. Simples assim. Dessa vez está doendo menos. É menos começo a te esperar. E mais. Descubro um pouco mais o que há. Lembro de querer só escrever a lembrança do presente. Lembro agora ao ler que escrevi. Lembro que pensei onde vou guardar isso. De querer esconder bem. De não querer perder essa lembrança. De escrever pra que lembrar ficasse mais leve. Lembro que eu tinha um música do Tom Waits pra aprender a tocar no violão. All the world is green. Lembro que falei pra ele do meu tesão pelo meu professor de violão. Até isso eu lembro.

III

Eu preciso comer alguma coisa. Pega pra mim. A voz dele estava bem debilitada. Mas continuava forte. Voz de um velho. Que não sai mas chega. Eu sempre chamara ele de meu velho. Desde quando começamos a namorar. Eu com 24 e ele com 44 anos. Nossos amigos mais próximos de vez em quando me repreendiam. Não chama ele de velho. Ele gosta. Você ainda tem aquelas cartas? Meu pensamento estava longe. Fingi não ter ouvido. Mas a calma impressa no silêncio dele me derrubou. Eu tenho. Come. Eu estava pensando como alguns homens temem mais a família que a solidão. Eu quero dizer essa solidão da velhice. Do arsenal de remédios que alguém passa a te enfiar por todos os orifícios. Da dependência real do outro. Do definhar. Temem mais a família que a possibilidade de morrer sós. São homens muito corajosos. Topam mais viver com esse fantasma do que viver com alguém. Fazem de tudo para morrer antes dessa solidão chegar. Se imaginam cantando em silêncio suas últimas palavras. E o medo é outro. É de não ter uma bunda pra olhar nessa hora derradeira. Solidão chuva fina. And a little rain never hurt no one. Não, a solidão não é o pior castigo. Pior é não ter a bunda. Sempre tive atração por esses homens. Uma atração por abismos. Lê pra mim aquela carta que você me chama de seu avô. Eu não te chamo de meu avô. Eu não estava fazendo uma metáfora. Era uma carta de despedida minha pra um desses homens. Um homem que nunca acordou do meu lado. Medo de cair. Eu era o abismo.

Publicidade

Esse texto é da minha amiga e atriz HELENA CERELLO, mulher do RAULZÃO. A de chapéu [que é meu]. E que se arrisca: poemas e, agora, ficção [contos]. Bom para ver no que ELAS pensam.

Opinião por Marcelo Rubens Paiva
Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.