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Pequenas neuroses contemporâneas

Opinião|Crise no mercado de livros e o desabafo de um editor

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Atualização:

 

 

O CEO da Companhia das Letras, Luiz Schwarcz, começou comigo nos anos 1980, sob as asas do mesmo editor, Caio Graco, o gênio da Brasiliense, que revolucionou o mercado.

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Foi montar sua própria editora, transformou-se numa grife, adquiriu outras e se associou a gigante Penguin.

Viveu comigo todas as crises e bons momentos: moratória de Figueiredo, fim da ditadura, Plano Cruzado, Bresser, Collor, efeito Orloff (Rússia), crise na Argentina, do papel, do dólar em FHC, boom das bienais e feiras de livros, barateamento da produção, compras de livros por governos, leis de inventivo, entrada no mercado de gigantes estrangeiras, fusões de editoras, começo das lojas virtuais e sites de compra, sucesso e falência de megastores.

Conhecemos o boom de livros de autoajuda, religiosos, livros de franquia, distopia, até de livros para colorir.

Livrarias se fundiram, apesar das ameaças da compra digital.

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Nunca me esqueço de ficar atrás, na fila de uma livraria, de um cliente com uma pilha de livros variados e comentar: Este aí é um tremendo leitor... Que nada, era o boy da submarino.com, com uma lista, comprando a preço de livraria para revender pela internet com desconto e conquistar o mercado que engatinhava.

Não entrarei no mérito de quem acertou e errou.

Era estranho num mercado em convulsão a Livraria Cultura abrir loja atrás de loja (só em Recife, duas, uma mais incrível que a outra), comprar a FNAC, assim como Saraiva com a Siciliano, enquanto, no mundo todo, as livrarias, até as tradicionais, fechavam; resistiam as de nicho e médio porte.

A crise de hoje nunca vi em 35 anos de carreira. Nunca imaginei que chegaríamos a esse ponto.

Tem coisas a serem feitas, como autorizar um desconto de apenas 10% no ano de lançamento, controle de preços que impediria dumping, prática condenável e ilegal no capitalismo.

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Será que a carta de amor aos livros de Schwarcz comove alguém?

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Aqui vai na íntegra:

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O livro no Brasil vive seus dias mais difíceis. Nas últimas semanas, as duas principais cadeias de lojas do país entraram em recuperação judicial, deixando um passivo enorme de pagamentos em suspenso. Mesmo com medidas sérias de gestão, elas podem ter dificuldades consideráveis de solução a médio prazo. O efeito cascata dessa crise é ainda incalculável, mas já assustador. O que acontece por aqui vai na maré contrária do mundo. Ninguém mais precisa salvar os livros de seu apocalipse, como se pensava em passado recente. O livro é a única mídia que resistiu globalmente a um processo de disrupção grave. Mas no Brasil de hoje a história é outra. Muitas cidades brasileiras ficarão sem livrarias e as editoras terão dificuldades de escoar seus livros e de fazer frente a um significativo prejuízo acumulado.

As editoras já vêm diminuindo o número de livros lançados, deixando autores de venda mais lenta fora de seus planos imediatos, demitindo funcionários em todas as áreas. Com a recuperação judicial da Cultura e da Saraiva, dezenas de lojas foram fechadas, centenas de livreiros foram despedidos, e as editoras ficaram sem 40% ou mais dos seus recebimentos-- gerando um rombo que oferece riscos graves para o mercado editorial no Brasil.

Na Companhia das Letras sentimos tudo isto na pele, já que as maiores editoras são, naturalmente, as grandes credoras das livrarias, e, nesse sentido, foram muito prejudicadas financeiramente. Mas temos como superar a crise: os sócios dessas editoras têm capacidade financeira pessoal de investir em suas empresas, e muitos de nós não só queremos salvar nossos empreendimentos como somos também idealistas e, mais que tudo, guardamos profundo senso de proteção para com nossos autores e leitores.

Passei por um dos piores momentos da minha vida pessoal e profissional quando, pela primeira vez em 32 anos, tive que demitir seis funcionários que faziam parte da Companhia há tempos e contribuíam com sua energia para o que construímos no nosso dia a dia. A editora que sempre foi capaz de entender as pessoas em sua diversidade, olhar para o melhor em cada um e apostar mais no sentimento de harmonia comum que na mensuração da produtividade individual, teve que medir de maneira diversa seus custos, ou simplesmente cortar despesas. Numa reunião para prestar esclarecimentos sobre aquele triste e inédito acontecimento, uma funcionária me perguntou se as demissões se limitariam àquelas seis. Com sinceridade e a voz embargada, disse que não tinha como garantir.

Sem querer julgar publicamente erros de terceiros, mas disposto a uma honesta autocrítica da categoria em geral, escrevo mais esta carta aberta para pedir que todos nós, editores, livreiros e autores, procuremos soluções criativas e idealistas neste momento. As redes de solidariedade que se formaram, de lado a lado, durante a campanha eleitoral talvez sejam um bom exemplo do que se pode fazer pelo livro hoje. Cartas, zaps, e-mails, posts nas mídias sociais e vídeos, feitos de coração aberto, nos quais a sinceridade prevaleça, buscando apoiar os parceiros do livro, com especial atenção a seus protagonistas mais frágeis, são mais que bem-vindos: são necessários. O que precisamos agora, entre outras coisas, é de cartas de amor aos livros.

Aos que, como eu, têm no afeto aos livros sua razão de viver, peço que espalhem mensagens; que espalhem o desejo de comprar livros neste final de ano, livros dos seus autores preferidos, de novos escritores que queiram descobrir, livros comprados em livrarias que sobrevivem heroicamente à crise, cumprindo com seus compromissos, e também nas livrarias que estão em dificuldades, mas que precisam de nossa ajuda para se reerguer. Divulguem livros com especialíssima atenção ao editor pequeno que precisa da venda imediata para continuar existindo, pensem no editor humanista que defende a diversidade, não só entre raças, gêneros, credos e ideais, mas também a diversidade entre os livros de ambição comercial discreta e os de ambição de venda mais ampla. Todos os tipos de livro precisam sobreviver. Pensem em como será nossa vida sem os livros minoritários, não só no número de exemplares, mas nas causas que defendem, tão importantes quanto os de larga divulgação. Pensem nos editores que, com poucos recursos, continuam neste ramo que exige tanto de nós e que podem não estar conosco em breve. Cada editora e livraria que fechar suas portas fechará múltiplas outras em nossa vida intelectual e afetiva.

Presentear com livros hoje representa não só a valorização de um instrumento fundamental da sociedade para lutar por um mundo mais justo como a sobrevivência de um pequeno editor ou o emprego de um bom funcionário em uma editora de porte maior; representa uma grande ajuda à continuidade de muitas livrarias e um pequeno ato de amor a quem tanto nos deu, desde cedo: o livro.

Opinião por Marcelo Rubens Paiva
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