PUBLICIDADE

EXCLUSIVO PARA ASSINANTES
Foto do(a) coluna

Pequenas neuroses contemporâneas

Opinião|Brasil sofre crise política ou psicológica?

Atualização:
FOTO TIAGO QUEIROZ/ESTADÃO Foto: Estadão

 

Cenas de ontem, da queima de um boneco representando uma filósofa, diante de um espaço em que se realizava um debate acadêmico, em que se discutia o sionismo e a relação israelenses-palestinos aos gritos de "o brasileiro não aceita a depravação da nossa cultura", em que se destacava o cartaz "em defesa das princesas do Brasil" e pedia um buzinaço a favor do "casamento como Deus fez: 1 homem + 1 mulher", organizado por skinheads, membros da TFP, ativistas independentes, defensores da intervenção militar, cuja militante se vangloriava de ter conseguido "eliminar o ensino de gênero em 91% dos municípios", levanta a dúvida de que o Brasil sofre uma crise política ou psicológica.

PUBLICIDADE

Como escrevi há três semanas no Caderno 2:

Um jovem zen que abandonou a faculdade de economia no primeiro ano, por se sentir mais inteligente que seus professores que, mais tarde, revelaram que o aluno não teve contato com nenhum professor de economia, mais um jovem afrodescendente que é contra cotas raciais,Dia da Consciência Negra, ensino crítico nas escolas e lidera, com um ator famoso, galã que foi casado com uma estrela do teatro e da TV e, na geladeira, partiu para uma carreira ousada na indústria de filmes de sexo explícito homossexual, sentou-se com um Ministro da Educação e se diz aluno de sociologia de uma universidade que não tem curso de sociologia, resolveram para o bem da moral e bons costumes protestar contra a exposição de arte de um espaço cultural de um banco, que debatia o preconceito, valores morais e éticos que a arte, filosofia, sociologia sempre buscam contextualizar, juntaram-se na porta de um museu para protestar e acusar de pedofilia a performance de um bailarino.

Um carismático humorista de stand-up comedy, cuja banda é comandada por um roqueiro sarcástico ícone do combate à ditadura, como outro roqueiro talentosíssimo e fã da vida bandida, bad boy que fez sucesso com a fama de rebelde, seguem e dialogam com um filósofo de direita que mora fora do Brasil, ex-militante comunista de carteirinha, membro do PCB, astrólogo, antigo membro de uma ordem muçulmana, que dá aulas pelo Youtube, Facebook e publica livros de sucesso, tem uma legião fiel de seguidores, atua nas redes sociais xingando quem o contesta, como estudantes no recreio de uma escola, inclusive o grupo de ativistas dos jovens zen e afrodescendente, com quem rompeu.

O grupo também foi criticado por um jornalista ex-trotskista, que se tornou ícone do pensamento da direita e alçou a fama atacando a esquerda, inspirando outros jornalistas, com uma algazarra barulhenta que transformou o debate político numa briga de torcida, jornalista processado pelo filósofo astrólogo e que também rompeu com o grupo do jovem zen e do afrodescendente defensores da proposta de uma professora de Direito da USP, última colocada no concurso para titularidade, mais um jurista de prestígio e um ex-promotor ex-ativista dos direitos humanos, então aposentado, fundador do partido que já foi considerado de esquerda, mas que, para governar, aliou-se àqueles que o perseguiram durante a ditadura, quando era de fato de esquerda, a adversários políticos históricos, ruralistas contrários à reforma agrária, item do programa do partido, forças conservadoras evangélicas, que pressionaram para excluir o ensino obrigatório de sociologia, filosofia e arte nas escolas, e indicaram o ensinamento religioso, no país de muita mitologia indígena e religiões, inclusive afros.

Publicidade

O país, atrasado por séculos de escravidão, agora não só afrouxa e dificulta penas de empresas que submetem trabalhadores a condições degradantes e análogas à escravidão, como questiona o direito à terra de nações indígenas e quilombolas e cede foro privilegiado a militares acusados de crime, logo depois de um general ensandecido pela crise institucional defender sem ser punido uma intervenção armada, rebelião contra um governo civil e democrático que impichou dois dos seus quatro presidentes eleitos, a última por manobras fiscais que quebraram o país que descobriu uma rede bilionária de corrupção na maior empresa nacional, da qual ela presidiu o Conselho de Administração, enquanto uma gangue raspava os cofres da petrolífera, do fundo de pensão dos funcionários e de outros fundos de pensão, que, derrubada numa sessão em que um deputado eleito pelo voto homenageou um torturador notório da ditadura, abriu vaga para seu vice acusado de dar um golpe aliado ao grupo do ativista zen e do afrodescendente, acusado junto com outros ministros de corrupção, organização criminosa e obstrução da Justiça, mas que conseguiu se livrar de processo de impeachment, o que não aconteceu com a antecessora, cujo assessor foi flagrado correndo da pizzaria mais tradicional da cidade com uma mala com R$ 500 mil, vice do mesmo partido de um ex-ministro do Estado, em cujo apartamento vazio chamado de bunker foram  encontradas oito malas e cinco caixas, totalizando R$ 51 milhões.

O país, cuja corte suprema não tem conseguido unanimidade na aplicabilidade da lei, constantemente em horário nobre da televisão vestidos com capa de Batman, numa linguagem jurídica barroca, presidida por uma ministra que, num encontro com a nata do jornalismo, confessou que se os brasileiros soubessem de tudo o que ela sabe, teriam dificuldades para dormir, cujo presidente empossado que detém o pior índice de aprovação da história afirma ser vítima de torpezas e vilezas, e que há um golpe em andamento, que por um golpe de sorte foi grampeado por um dos homens mais ricos do país que não sabe operar um gravador de quinta categoria, preso por corrupção com o irmão e que se casou com uma linda estrela da TV numa cerimônia nababesca para 1.500 convidados, em que quase todos acima compareceram e viram o deslumbrante vestido de Karl Lagerfeld que a noiva, que não sabia quem era, em viagens de jatinho com as amigas a Paris, selecionou com cuidado, cujo noivo foi flagrado negociando propina de milhões com um senador da República perdoado por seus pares, indica: vivemos num hospício.

Opinião por Marcelo Rubens Paiva
Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.