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Pequenas neuroses contemporâneas

Opinião|A vida - uma grande brincadeira

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Atualização:

A vida

Quando nasceu meu filho, alguém disse: "É o filé-mignon da vida."

Mas ela fica cada dia mais caótica. Dizem que só "melhora".

O que será "melhorar"?

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Talvez nos acostumemos. Tomara. Minha mãe teve cinco! Passei a perdoá-la no que classifico como baixa participação na aflição afetiva dos filhos.

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Amanhece.

Passo a viver com meu duplo: o eu e um outro, o eu e o papai. Ele não acordou. Nem dou a descarga. Não escovo os dentes. Ando pela casa lentamente em silêncio. Dizem que audição é o sentido mais aprimorado de um bebê. Me acostumei a andar como um gato, sem esbarrar em nada. Telefones no mudo. Computadores com alto-falantes em 0%.

Pressa. É a chance de tomarmos o café da manhã sem precisarmos reparti-lo com o pequeno e curioso sujeitinho que vive conosco há um ano e meio e, se dermos sorte, lermos o jornal de cabo a rabo. Artigos longos ficam para "quem sabe..."

Não demora. O pequeno cidadão sente o deslocamento de ar da casa. Acorda. Não posso reclamar. O filho que dorme antes dos pais e acorda depois começa a falar sozinho no berço, a cantar. E torço para ele continuar se entretendo. Dizem que melhora a concentração.

Então escuto: "Pá?" Depois vem a primeira palavra que aprendeu, por culpa minha, que sussurrava direto no seu ouvido, torcendo para ser a primeira palavra a aprender (e não deu outra): "Papá?" Interessante como a forma de me chamar é uma pergunta: "Pá pá?". Por que quer saber se estou pela redondeza. E se sofisticou: "Pai?" E virou: "Papaiiii?"

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Eu deveria ter ensinado: "Mamã". Calma, um segundo. Corro pela casa. Xícaras, pratos, talheres, copos, telefones, mouses e teclados nos fundos das mesas. Celular fora do campo de visão. Controles remotos na gaveta. Portas da cozinha e banheiros fechadas. Eu não sabia que bebês curtiam molhar a mão em privadas. Todas elas agora têm lacre. Todas as gavetas têm lacre. Checar se todas estão lacradas.

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"Papaiii!?" Já vai. Checar protetores nas tomadas, carregadores, espuma nas portas. Guardar pilhas e moedas. A paciência dele se esgota. Então tá... Abro a porta: bom-dia.

O quarto escurinho tem aquele cheiro de leite com pomada e sabonete neutro. Ele está em pé no berço e fica felicíssimo. Me mostra seu brinquedo, um boneco Piu-Piu gigante, quem tenho que cumprimentar, com quem ele dorme, que na verdade foi da minha mulher.

Abro a cortina blecaute. A luz o cega. Sinto aquele bafo matinal. Como uma pequena criatura pode ter já um bafo tão potente? Tem remela, cabelos amassados, olhos inchados. Acorda como qualquer adulto. A diferença é que acorda sempre num colossal bom-humor, como se a vida fosse a melhor coisa do mundo, uma eterna brincadeira, a descoberta constante, que ele adora.

Acender, apagar a luz e ligar um ventilador dão a sensação de êxtase pelo poder e controle de forças invisíveis. Mamadeira, ele aponta. Comer é crucial. Ele anda pela casa sugando. Estou lendo jornal. Ele aparece ao meu lado, arranca-o numa velocidade incrível e volta à mamadeira. Peço meu jornal de volta. É uma negociação educada. Ele devolve e some.

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Estar quieto demais não é salvação, é problema. Alguém vai logo checar. O que ele está aprontando? Estar quieto é aprontar. Está bebendo shampoo, desenrolando papel higiênico, tirando livros da estante ou esvaziando a lixeira. "Não pode!" Chora.

Estou no teclado, ele reaparece, aperta o enter, some meu texto da tela. Ele volta a mamar e some. Toca o telefone. Atendo. Ele reaparecer, puxa o telefone, que cai no chão. "Não pode!" Caiu a linha.

Ele cai no chão. Bateu a cabeça. Chora. É uma média de quatro tombos por dia. Fala pela casa: "Bru bur u". "Tá pê-pê-pê". Faz variações da palavra "meme". Então vem: "Papai te? Papa i Uh, dei ber ti... Umaba tuiu"

"Sei", repondo, enquanto trabalho. "Ti tá... ti tá... ti tá...", começa a série de repetições. Respondo: "Jura?" "Sério?" "Nossa..." Gargalha. E passa a empurrar coisas pela casa. Me bloqueia com móveis: uma barricada. Tento tomar um café. Ninguém se lembra onde está a bandeja com as cápsulas, várias vezes derrubada por ele.

Meu celular, bobeei, sumiu. Estava carregando. Ele descobre a minha carteira, desmonta e espalha os cartões de crédito pela casa. Como ele descobriu que aquilo é tão importante para mim? Claro. Viu papaiiii sacá-la várias vezes e comprar coisas com aqueles cartões. Se é importante para o papaiii, é para ele.

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E bacana é brincar com as coisas importantes do papai. Sumiu com meu mouse. Bobeei. Fico sem trabalhar até encontra-lo. Outro dia, o encontraram na cesta de roupa suja. Com tudo que é importante para o papai, ele some.

Vai para a escola, e sinto saudades. Esbarro em brinquedos que começam a tocar sozinhos. Tem um que faz "uiii!". Tomo um baita susto e vejo um troço amarelo piscando no formato de um mini andador que ri de mim. Sem querer atropelo um ursinho que diz "barriga", "você é meu amigo", e pede "me dá um abraço". Na pia, tem uma zebra, uma girava e um leão, todos de plástico do mesmo tamanho e vesgos.

O moleque volta animado: "Êeeeeeeee". E cai no chão. Bate a cabeça. Chora. Vem a jornada de caça aos gatos. O mais velho, paciente, aceita a aproximação. O mais novo, adotado, cuja infância não sabemos por qual inferno passou, não quer saber.

Momento do cadê, "achô", cadê, "achô", que dura uns 20 minutos. Pelo corredor, costuma correr e gritar: "Êeeeeeeee". Às vezes vou junto gritando o "Ê". Quando vão banhá-lo, ele vem peladinho se mostrar. Faz xixi no chão. Só eu e ele achamos graça. Ele dança sobre o xixi. Só eu e ele rimos. Mostramos o umbigo um para o outro, o barrigão, batemos no barrigão. Ele escorrega no xixi, cai e chora.

Anoitece. Tentamos ver os telejornais. Ele desliga a TV, ligamos, desliga, ligamos, ele a tira da tomada, desistimos. Há meses não vemos telejornais.

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Começa a coçar os olhinhos. Vamos nanar? Ele faz não com a cabeça. Levo para o berço. Fico ao seu lado no escuro. Ele sussurra: "Pá-pá... pá-pá..." Deita, fala um pouquinho, canta baixinho e sussurra: "Pá-pá..." Amanhã tem mais. Não é apenas o filé-mignon.

É o rebanho todo.

Passo à noite com saudades.

Na manhã seguinte, fico esperando ele acordar, para recomeçarmos a viver. Para acha-la uma grande brincadeira.

 

Opinião por Marcelo Rubens Paiva
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