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Pequenas neuroses contemporâneas

Opinião|A memória

Atualização:

Muitos não se esquecem do primeiro gol, feito no pátio da escola. Ou do primeiro frango, quando se foi escalado à revelia para jogar debaixo das traves. Do primeiro beijo de língua, da primeira cicatriz, do primeiro fora e da primeira vez em que se ouviu "eu te amo", ninguém se esquece.

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Também não nos esquecemos da primeira vez em que ouvimos "vou para a casa da minha mãe", do primeiro divórcio, da audiência na Vara da Família, do terno e do cinismo do advogado do outro, e do tédio do juiz, que já ouviu aquela ladainha tantas vezes...

Nem do primeiro reencontro casual com a ex, em que ela, sorridente, está mais bonita, mais loira, menos cacheada, mais magra, com um par de seios novos, maiores e um vestido bem mais curto que os anteriores, muito bem acompanhada por alguém mais bronzeado, simpático, gente fina e absurdamente mais sarado.

Ela também não se esquece do dia em que vê o ex saindo do restaurante mais caro da cidade- enquanto antes só a levava no pé-sujo mais barulhento-, abraçado a uma garota mais nova que os filhos deles, usando boné, tênis All Star, sem os cabelos brancos de antes, mas ainda com aquela eterna barriguinha, fumando [desde quando voltou a fumar?] e entrando num carro que daria para pagar a pensão alimentícia de todas as mulheres presentes no empreendimento gastronômico citado.

Ambos os gêneros não se esquecem do primeiro orgasmo, do dia do sim, da lua-de-mel e da primeira vez em que ele é obrigado a dizer "isso nunca me aconteceu". Também não nos esquecemos da primeira vez que em ouvimos "não é isso que você está pensando", "o problema não é você", "o celular estava no vibracall" e "não bufa". Nem da primeira camisinha. Muito menos da primeira camisinha estourada.

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Diz o pensador Washington Olivetto, que uma garota não se esquece do primeiro sutiã. O que as garotas não sabem é que nós, garotos, não nos esquecemos da primeira vez em que prendemos o bem mais precioso no zíper da calça. Vemos estrelas. É como se o Big Bang se repetisse bilhões de anos depois.

Elas nunca se esquecem da primeira curetagem, e eles, do primeiro exame de próstata. Acho que poucos se lembram da queda do primeiro dente-de-leite. Mas ninguém se esquece da primeira extração do primeiro siso. Ou da primeira operação para extrair as amídalas. Ou da primeira dentadura. Não nos esquecemos também quando o limite de colesterol passou para o nível inaceitável, ou quando ouvimos pela primeira vez a pergunta: "Você tem caso de diabetes na família?"

Da primeira vez em que o time de coração ganhou a Libertadores, alguém se esquece? Nem os corintianos, da quantidade de vezes em que o time foi eliminado perto das finais. Nem em qual churrasco estava nas finais das Copas do Mundo de futebol. Nem do pênalti perdido pelo craque do time na decisão. Ou da primeira vez que entrou num estádio. Ou dá última, em que passou mal, depois de jantar o dogão com purê e maionese da rua em frente.

Ninguém se esquece da primeira vez em que andou de bicicleta sem rodinhas, da primeira vez em que boiou sem a ajuda dos braços do avô, do primeiro tombo do cavalo. E do primeiro e indigesto fio de cabelo branco, alguém se esquece?

E do tamanho do primeiro celular? E da primeira bicicleta? E do primeiro carro? E da cara do primeiro instrutor da autoescola? E de todas as casas em que morou? E do primeiro cachorro? E de todos os outros? E dos gatos? Da babá? Da primeira escola? E da última? Da primeira namorada? E da última?

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Tudo bem se esquecer do número do PIS/Pasep, ou do passaporte, que muda a cada cinco anos. Mas alguém se esquece do número do próprio celular, RG, CPF ou do telefone da mãe? Do aniversário?

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Alguém se esqueceu da reação que teve quando soube que o Senna, o Tancredo, a Diana, o John Lennon, os Mamonas e o Michael Jackson morreram? E por qual canal assistiu a queda das Torres Gêmeas no 11 de setembro? E da primeira greve? Do primeiro voto? Da primeira vez diante da urna eletrônica? Da primeira vez que voou de avião, ou helicóptero, ou para o espaço?

E a Zélia anunciando pela tevê que cada brasileiro teria o direito de sacar apenas R$ 50? E das Diretas Já? E dos caras pintadas? E do Collor dando adeus? E do que estava fazendo no dia do blecaute? E do dia em que o PCC parou a cidade?

Alguém se esquece do cheiro da avó? Do perfume do amante? Do gosto da manga, da água de coco, do caju, do figo? Do cheiro do mar? De dizer "feliz ano novo"? De curar soluço? Do primeiro vestibular? Do homem chegando na Lua? Do primeiro porre?

Depois dizem que somos um povo sem memória.

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Opinião por Marcelo Rubens Paiva
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