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Pequenas neuroses contemporâneas

Opinião|a desconversão humana

Atualização:

 

Tentou a noite toda escrever algo. A tela em branco imprimia a sua crise duradoura.

Um escritor sem ideias. Café, cigarro, doses de uísque, nada serviram.

Tentara já vinho, conhaque, charuto, macrobiótica.

Há meses, o bloqueio criativo apareceu. Noites em busca de inspiração. Precisava escrever, era o seu ganha-pão, seu dom, sua vida, se dedicara anos. Nada.

Deixou o computador ligado e foi dormir.

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O que leva um escritor a parar de escrever?

Por que Rimbaud, depois de criar a poesia moderna, sumiu?

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E Sallinger, que escreveu apenas quatro livros? Auto exigência? Atração pelo nada.

"Escrever também é não falar, é se calar, uivar sem ruído", dizia Marguerite Duras.

Síndrome de Bartleby é a paralisia que atormenta os escritores. Inspirada no personagem de Melville (Moby Dick), copista de um cartório que fica na sua mesa sem fazer absolutamente nada, sem ir a lugar algum. Nem mesmo se alimentar.

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No dia seguinte, lá estava a frase metafísica na tela do seu computador: "O tempo só corre para quem se preocupa com a perda dele." Quem digitou?

Heráclito? Sim, lembrava os pensamentos circulares do pré-socrático. Será que digitara num delírio torturado pelo sono e desespero? Surto de sonambulismo?

Sua diarista digitou? Sua diarista não aparecia há dias.

Olhou para o lado e viu seu gato vira-lata deitado no canto da mesa, com as orelhas em pé, encarando-o de relance. Não é possível!

O gato costumava passear pela mesa sempre que tentava escrever. Por vezes ficava em frente do monitor, tapando a visão. Às vezes brincava com o cursor do mouse. Em outras passeava sobre o teclado.

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Suas patas apertavam e digitavam [pateavam] apenas frases como "procslxkdjshsdh gfgfggf czvc".

Foi você?

Ele miou de volta.

Repetiu a experiência à noite. Deixou o computador ligado, fechou a porta do quarto, deitou-se. Não conseguia dormir. Tentava escutar os passos do gato pela casa. Mas o silêncio era o maior ruído.

Na manhã seguinte, outra frase digitada: "Esperar é também realizar."

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Olhou para o gato. Parecia dormir profundamente. Sua respiração, ofegante. O batimento cardíaco dos gatos é superior. Ou estava exausto?

Mas para quem contar que desconfiava que seu gato mandava mensagens quando ele ia dormir. Não podia para o seu editor, pois fugia dele, que cobrava um romance cujo adiantamento já fora pago. Nem ao melhor amigo, que esperava há meses o prefácio não escrito de um livro quase no prelo.

Ninguém sabia da sua síndrome. Vivia o tormento inventando desculpas, "já estou terminando", "deu pau no computador e perdi tudo".

Esperava o milagre da criação, a voz de Deus ou do diabo falando através dele, o despertar do inconsciente, emitindo sinais que chegariam aos seus dedos para movê-los em busca de uma história.

Fez as malas. Encheu a casa com potes de água e ração da melhor qualidade. Deixou o computador ligado. Escondeu os brinquedinhos do gato, para que não houvesse distração. Até limpou a mesa, para que seu suposto ghost writer felídeo tivesse a ordem necessária. Despediu-se com carinho. E foi para um flat pulguento do centro da cidade.

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Passou quatro noites sem sair do quarto, fumando sem parar, ansioso pelo resultado da experiência. E preocupado. Seria seu gato um escritor que precisava da presença do dono para criar. Ou, como a maioria dos gênios, a paz, o silêncio e a solidão são o fogo que ferve as ideias e cozinha a arte?

Ao voltar para casa, encontrou-a toda revirada, resultado da solidão de um vira-lata carente: sofá arranhado, livros derrubados, papel higiênico desenrolado. Seu pequeno animal correu para saudá-lo, miou muito, trançou por suas pernas, saudoso.

Passo a passo, caminhou até a mesa de trabalho. Tela em branco. Apertou o Ctrl home. Mais de 78 páginas escritas em formato Word, letra areal, tamanho 12.

A Desconversão Humana, chamava-se a obra. Que título pretensioso, pensou.

Riu sozinho. O que está acontecendo? Quem é você? Perguntou para o bichano que se acomodava no seu colo e ronronava.

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Leu. Um tratado sobre a solidão e de como todas as possibilidades de busca pela fé e um sentido para a vida criaram um efeito contrário, tornando o homem isolado e inapto a conviver com a própria consciência.

Segundo o gato writer, a criação de uma moral, a absorção de deveres e tabus, embrulharam a nossa essência. "Deve-se viver o nada", escreveu.

Maravilhado, apesar de não ter bagagem para compreender tudo, enviou por e-mail, sem nenhum comentário, apenas escrito "livro novo" no assunto, para o seu editor.

A resposta veio no dia seguinte: "Virou autor de autoajuda?". Que tosco e insensível editor. Que encaminhou para o selo deste gênero da editora, que aprovou o manuscrito, revisou e entregou para o departamento de marketing, que preparou o lançamento em quatro meses.

Resenhas? Apenas num jornal de bairro e numa revista literária cristã.

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Porém, pouco a pouco, o boca a boca interferiu no processo.

A Desconversão Humana em oito meses entrou para a lista de bestsellers, categoria não ficção.

Em oito semanas, atingiu o topo da lista.

Seu telefone não parou mais.

Queriam entrevistas, palestras, explicações. Editoras e agentes estrangeiros o procuraram.

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O livro foi traduzido e publicado em 65 países. Em todos eles, sucesso.

Logo começaram a surgir explicações e versões resumidas.

Um escritor pilantra irlandês lançou Como Entender a Desconversão Passo a Passo. A editora propôs uma versão infantil ilustrada. Um poeta do Mato Grosso lançou O Bê-á-bá da Desconversão. Um indiano escreveu A Desconversão Tântrica. Um sueco, A Desconversão Líquida.

Sua vida não teve mais sossego.

Por onde andava, tinha que dar autógrafos e tirar fotos em celulares.

Seu e-mail estava entupido: pedidos de entrevistas, seminários e casamentos. Seus amigos literatos o ignoraram, dominados por preconceitos contra livros de sucesso.

Familiares vieram pedir dinheiro emprestado.

Estressado, decidiu se isolar e mudar para uma praia deserta, para um bangalô sem luz elétrica, e viver recluso.

Claro. Levou o gato com ele. Que nunca mais pode escrever.

Mas se esbaldou: natureza e peixes.

Opinião por Marcelo Rubens Paiva
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