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Pequenas neuroses contemporâneas

Opinião|20 de janeiro

Há 40 anos, à noite, duas mulheres foram presas ao desembarcar no Galeão, de um voo vindo do Chile.

Atualização:

Uma foi visitar o filho. A outra, a irmã, casada com ele.

Exilados em Santiago, onde se reunia grande parte dos brasileiros perseguidos e banidos pelo regime militar, sob a proteção da ainda democracia de Allende.

Exilados e agentes duplos.

O voo era monitorado por agentes da Cisa, Centro de Informações da Aeronáutica, cuja sede era na Base Aérea do Galeão, ao lado.

Havia informações de que as duas senhoras traziam cartas para amigos e familiares dos "terroristas".

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Foram presas dentro do avião e revistadas na Aeronáutica.

Encontraram, entre algumas cartas, duas para um tal Raul, com o telefone dele anotado no envelope.

Uma de agradecimento, de uma ex-estudante envolvida com o MR-8, que Raul ajudou a tirar do Brasil [filha de um dos seus melhores amigos].

Outra com uma análise sobre a luta armada e os exilados.

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Raul era o codinome do meu pai.

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Que, como muitos brasileiros, combatia a ditadura do jeito que dava: escondia perseguidos, tirava-os do Brasil por rotas secretas, dava passaporte falso, dinheiro, mandava relatos para a imprensa internacional [a daqui era censurada] sobre torturas e abusos dos direitos humanos.

Era parte da chamada "rede de apoio", empresários, professores, cassados, profissionais liberais, cuja maioria nem defendia a luta armada, mas sabia que algo deveria ser feito, para mostrar que uma ditadura não pode passar sem resistência.

No dia seguinte, dia 20 de janeiro de 1971, nossa casa foi cercada e invadida.

Há exatos 40 anos.

Traziam metralhadoras e granadas.

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Esperavam encontrar um aparelho subversivo na orla do Leblon.

Mas era apenas a casa de um casal jovem, de 41 anos, com 5 filhos pequenos, que se preparava para ir à praia, no feriado de São Sebastião.

 Foto: Estadão

Levaram Raul embora, mas parte da equipe ficou na casa.

Quem chegasse, era preso também.

Pulei o muro escondido, para levar um bilhete à vizinha. Dei a volta na quadra, para escapar dos olhos dos agentes. Bilhete escrito pela minha mãe, que avisava da prisão e pedia para ninguém aparecer.

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Meu pai foi levado para o CISA e lá foi torturado.

No dia seguinte, o DOI/Codi, do Exército, que centralizava as operações de repressão política, soube que havia um "peixe grande" com a Aeronáutica, e o transferiu para as suas dependências, sede do I Exército.

E continuou a torturá-lo.

Sem sucesso, pelo visto, pois para lá levaram minha mãe e irmã de 14 anos.

Mas era tarde demais. Ele morrera.

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Minha irmã foi liberada no dia seguinte.

Minha mãe, só 13 dias depois.

Que começou a luta que durou uma vida.

O Exército no início não admitia a prisão dele nem delas.

Depois, montou uma farsa, de que ele tinha fugido.

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Sabemos hoje que ele morreu dois dias depois.

Tem-se até os nomes de quem o matou, sob o comando de quem.

Quanto ao seu corpo, há testemunhas de que fora enterrado no Recreio dos Bandeirantes, no Alto da Boa Vista, na Rio Santos, jogado de um avião, esquartejado.

É mais um na lista dos desaparecidos políticos.

Dia 20 de janeiro é o dia em que a família decretou a data de sua morte.

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Não temos um jazigo, mas temos uma data artificial.

A morte requer rituais.

E a força da família se mobilizou para a Anistia, o fim da ditadura e muitas outras lutas.

 Foto: Estadão

Há 40 anos, este caso não se encerra.

Pois se o Estado não quer, assim será.

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Sob as incongruências da Lei da Anistia, o Brasil nos pede para virar a página e esquecer.

Não, não dá para esquecer.

+++

Para marcar a data, sai pela Objetiva o livro SEGREDO DE ESTADO - O DESAPARECIMENTO DE RUBENS PAIVA, de Jason Tércio, que recebeu todo o apoio da família para fazê-lo e conseguiu escrever um ótimo e detalhado, mas doloroso, relato.

Será lançado dia 26/01 no Rio [Livraria Argumento].

E em 26/03 em São Paulo, com a abertura de uma exposição no MEMORIAL DA RESISTÊNCIA, organizada pelo Ministério dos Direitos Humanos.

 Foto: Estadão
Opinião por Marcelo Rubens Paiva
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