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Opinião|Vale o que está escrito

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De celebridade mesmo, só João Gilberto comparece na coletânea de textos jornalísticos A Poeira dos Outros que o repórter do Estado Ivan Marsiglia lança hoje. Os outros 19 referem-se a pessoas comuns, que seriam anônimas não estivessem de alguma forma envolvidas em fatos excepcionais. Bem, nem todos os perfis são de pessoas, mas isso veremos depois. Dos 20 textos, 17 foram publicados no Estado, apenas dois na revista Trip e um na Playboy.

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Comecemos por João, mesmo porque o perfil que Ivan lhe dedica serve como exemplo de sua proposta jornalística. Quem lê o título adivinha em que fonte o repórter vai beber. João Gilberto está Resfriado remete ao texto famoso de Gay Talese sobre o cantor Frank Sinatra, que era avesso, como nosso João o é até hoje, ao contato com a imprensa ou com outros seres humanos.

Talese, impossibilitado de entrevistar o genioso (e genial) artista, fez o que pôde. Ouviu gente que convivia com Sinatra e, juntando esses depoimentos às suas próprias observações, escreveu o perfil que se tornou um clássico do assim chamado jornalismo literário: Frank Sinatra Está Resfriado.

Como acontecia que João, às vésperas de completar 80 anos, estivesse também atacado pela banal porém incômoda vírus da influenza, Ivan toma o título de Talese emprestado e o adapta aos trópicos. O resultado é um delicioso perfil, pincelado a partir de histórias sugestivas e pitorescas. João não recebe ninguém mesmo, nem um fã deputado, Raul Henry, que lhe trazia de Pernambuco seu fruto preferido, o umbu, e deixava a cesta na portaria, sem subir.

Bem, alguns - além da mulher Claudia Faissol e da filha do casal, Luiza - privam da intimidade do astro. Mesmo que episodicamente, como o colunista Nelson Motta, que conseguiu dar uma volta no mitológico Monza verde em companhia de João. E assegura que ele não dirige como louco, como reza a lenda.

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Outros tiveram a oportunidade e não a aproveitaram, com foi o caso do roqueiro Lobão. João Gilberto queria gravar a música de Lobão, Me Chama, e, aproveitando o título, telefonou ao roqueiro às cinco da manhã. Lobão não foi porque, conforme confessa, não apresentava "condições técnicas" de se encontrar com ninguém naquela hora.

O texto de João Gilberto Está Resfriado é leve, inspirado, divertido. Há outros assim, como Carnaval na Praia dos Pelados, escrito originalmente para a Playboy, que relata a incursão do repórter à famosa Praia do Pinho, santuário nudista situado no litoral catarinense. Nesse texto, a reportagem observacional é, naturalmente, obrigatória, embora o jornalista tenha também conversado com muita gente no local. Como ele diz, "Observar, de todo modo, é o esporte predileto do Pinho", constatação feita ao assistir a uma partida de vôlei em que todos os jogadores, rapazes e moças, disputavam in natura. Assim como o próprio repórter, já que o "vestuário", se o termo cabe, é obrigatório no recinto, quer dizer, na praia.

O tom leve e divertido deve ceder espaço ao sério e ao grave quando outros temas se apresentam, como é o caso do texto que abre o livro, A Memória das Paredes, que tem por centro uma casa muito especial no bairro de Caxambu, em Petrópolis. Comprada por uma família nos anos 70, ela se revelou ser a mal afamada "Casa da Morte", de que falavam ex-presos políticos. Era um centro de tortura na época da repressão militar no qual se praticavam as piores atrocidades. Seguindo a indicação de uma antiga "moradora", a presa política Inês Etienne Romeu, a casa foi identificada. Foi adquirida por um engenheiro da Petrobras e reformada. Lá ele criou a família. Hoje, a casa foi desapropriada para sua futura transformação em museu sobre os anos de chumbo. Essa reportagem, publicada sob o título E o direito à memória bateu à porta recebeu o 12º Prêmio Estadão de Jornalismo na categoria Perfil. A pegada do texto é política e discute uma questão delicada. O que vale mais: o direito de propriedade de quem, inadvertidamente, adquiriu um imóvel utilizado por criminosos políticos, ou os interesses da memória do País?

Desse mesmo teor - e tom - é o doloroso relato que fecha o volume, A Longa Viagem de X2, sobre a luta de uma senhora de Fortaleza pela recuperação dos restos mortais dofilho, Bergson Gurjão Farias, assassinado na Guerrilha do Araguaia. Em 1969, Bergson entrou para a clandestinidade e seus pais nunca mais o viram. Apenas em 2009 restos mortais encontrados na região do Araguaia foram reconhecidos como sendo seus. "Passados 24 anos da redemocratização (o texto é de 2009), ainda existem cerca de 140 desaparecidos políticos no Brasil" constata o jornalista. Nenhuma das famílias têm esperança de voltar a vê-los vivos. Mas lutam para lhes dar sepultura digna. Enterrar os mortos é a maneira de fazermos o luto e voltarmos a viver. Recusar esse direito é punir, mais uma vez, as famílias dos desaparecidos.

A pauta do livro é bastante variada, assim como o tom adotado. O escritor pode optar pelo ponto de vista de uma onça em Sou suçuarana. Ou, em Pobre Cristiano, ou fazer o "perfil" de um obus do século 19, relíquia da Guerra do Paraguai, para discutir a questão da memória histórica na América Latina. Ou falar pelo ponto de vista da faixa presidencial, em Com a palavra, a faixa, para evocar nossos hábitos republicanos.

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O que não varia é o talento em buscar uma apuração inusitada, o capricho no texto, a originalidade na abordagem e o uso de técnicas ficcionais para fins de reportagem, traços que definem o jornalismo literário. São textos extensos para os padrões atuais do jornalismo impresso, mas que se leem com rapidez e prazer. Quando o jornalismo tradicional se encontra na encruzilhada da internet, parece interessante apostar cada vez mais em textos desse tipo, que não apenas informam, mas interpretam e iluminam os fatos sob ângulos originais. Sem o diferencial do texto, o jornalismo impresso condena-se à obsolescência.

Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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