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Cinema, cultura & afins

Opinião|Um Domingo muito particular *

Filme-síntese das tensões sociais que levariam ao Brasil de hoje, se passa no domingo da posse do presidente Lula para seu primeiro mandato.

Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Atualização:
 Foto: Estadão

 

Domingo é um filme coral, com diversos papéis proeminentes sem que haja um protagonista claro. Passa-se no dia da primeira posse de Luiz Inácio Lula da Silva como presidente, dia 1º de janeiro de 2003, recebendo a faixa de Fernando Henrique Cardoso. 

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Com esse pano de fundo histórico em aberto, filtrando-se pela narração de rádios e telas de TV, uma família gaúcha reúne-se na casa de campo para um churrasco. 

A casa da fazenda é estupenda, embora mal conservada. Parentes moram lá, mas a propriedade pertence à implacável matriarca, Laura (Ítala Nandi), que tenta manter o controle sobre todos embora obviamente o poder lhe escape entre os dedos. 

O filme é muito falado e a câmera desliza entre os personagens com inúmeros planos sequência. Há a família dos proprietários e há os empregados da fazenda. De forma sinuosa, entrevê-se uma dialética tipo Casa Grande & Senzala, que já existia no filme anterior de Barbosa, não por acaso chamado Casa Grande. Na entrevista, Fellipe Barbosa disse ter sido criticado quando lançou Casa Grande por seu desfecho visto por muitos como conciliatório. "Talvez por isso não haja conciliação em Domingo", diz. 

De qualquer forma, o projeto tem de ser partilhado não apenas com a diretora Clara Linhart, mas, em especial com o roteirista Lucaz Paraíso, de quem veio a ideia. Um projeto surgido em 2005, que recebeu inúmeros tratamentos até por fim ser realizado. O longa estreou na competição da Mostra Horizontes no recém-encerrado Festival de Veneza. "Ninguém imaginava que, quando lançássemos o filme, o Lula estaria preso", diz o diretor. 

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É essa a capacidade da arte. De ser ressignificada e reprocessada segundo sua atualidade ou defasagem em relação aos acontecimentos históricos. 

Em todo caso, como foi filmada agora, ela já recebe emanações de um Brasil que nunca mais foi o mesmo, apesar de agora ter dado tantos passos para trás, após o golpe parlamentar de 2016. Retrocessos, mas que não anulam uma determinada tomada de consciência das chamadas classes "subalternas" em relação a seus direitos e que está em outros filmes como Que Horas Ela Volta?, de Anna Muylaert. 

Em Domingo, há essa tensão mais evidente entre patrões e empregados, no lugar da tradicional submissão, ainda mais típica nas regiões rurais, do mando e dependência. 

Em suas algumas imprecisões e indecisões, Domingo é um filme muito estimulante sobre um Brasil que muda, apesar de tudo. O fato de não ser conciliatório o melhora e muito. O país precisa de diálogo, sem dúvida, mas não pode retroceder sobre direitos conquistados. 

  • Filme visto no Festival de Brasília do ano passado, antes da eleição de Bolsonaro. Revi-o agora, numa sessão de imprensa e posso dizer que o filme cresceu com os desdobramentos históricos deste pobre país. Continua sendo um diagnóstico contundente sobre o Brasil. Do sentimento de superioridade de certa elite decadente à reação das classes ditas "subalternas". A certa altura, não aguentando mais as loucuras daquela família, a empregada e sua filha simplesmente pegam suas coisas e abandonam a casa da fazenda. Um gesto simbólico que fazia todo sentido no alvorecer de uma era que, somados erros e acertos, punha como protagonista a parte esquecida da Nação. Isso acabou. A página foi virada e a realidade é outra. Agora é preciso virar esta outra página. 

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Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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