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Opinião|Tyson: ascensão e queda de um campeão

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Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

A biografia de Tyson não é uma qualquer, nem entre gente famosa. Dificilmente, mesmo entre campeões, se encontram tantas contradições e tantos altos e baixos, montanha-russa que faz dessa trajetória tema digno de um grande romance ou de um filme épico. Vindo da miséria e da delinquência, Tyson subiu na vida à custa dos punhos. Tornou-se um peso pesado literalmente indestrutível em seu período de glória. Envolveu-se com drogas, álcool, mulheres demais (e nem sempre as mais indicadas), e tomou um nocaute fatal ao ser condenado e preso por estupro. No ringue, de fera temível, passou a beijar a lona, desde que para ela foi mandado por um certo James Buster Douglas. Essa trajetória de ascensão, declínio e queda é lembrada no ótimo documentário de James Toback, intitulado, de maneira singela, Tyson.

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O centro do filme é uma vigorosa e reveladora entrevista que o autor faz com o lutador. A ela, se incorporam imagens de arquivo que rememoram a carreira de Tyson em suas diferentes etapas. Desde quando surgiu como novo fenômeno do boxe até o momento em que cai mais baixo, ao lutar contra Evander Holyfield, por falta de melhores recursos, morde a orelha do oponente em pleno ringue, é desqualificado pelo juiz e suspenso do boxe.

O que há de comovente no documentário de Toback é o esforço que Tyson faz para compreender a si mesmo. E não se pode dizer que falhe nesse particular. Quem o vê, intui que é verdade o que diz de si mesmo. Ele se define como homem de extremos, não programado pela natureza para viver no meio fio da mediocridade. Em todos os sentidos. Por isso ganhou U$ 400 milhões e terminou na insolvência. Por isso foi da marginalidade ao topo do mundo e, deste, ao fundo do poço. Foi o homem de ferro indestrutível, que derrotava adversários respeitáveis com meia dúzia de socos, e conheceu o gosto da lona sob ação de pugilistas pangarés. Esse personagem de extremos é o que emerge do documentário.

O filme trabalha com idas e vindas entre a entrevista e o material de arquivo. Veem-se cenas das principais lutas, entremeadas com passagens inglórias como as brigas com a primeira mulher e a acusação de estupro que lhe custou três anos de prisão. Veem-se na tela também algumas raras cenas da paz familiar de Tyson. Seu casamento mais recente e brincadeiras com os filhos. Encena uma luta com a filhinha pequena e finge que vai a nocaute. A cena é tocante, sem que nos demos conta do motivo, num primeiro momento. Mas, em seguida, a compreensão emerge. Estamos acostumados à imagem pública dos ídolos e a esta superfície nos limitamos. A ponto de não nos darmos conta de que eles também possuem uma intimidade. Quando uma fresta dessa vida particular é aberta, cai a ficha, óbvia: são humanos, como qualquer um de nós.

Outro aspecto importante da trajetória de Tyson é sua devoção ao treinador Cus D"Amato, de resto uma figura mitológica do boxe norte-americano. Foi D"Amato quem o tirou das ruas quando era um garoto arruaceiro e predestinado ao crime, e o transformou em vencedor. D"Amato exerceu sua influência sobre várias gerações de boxeadores. Ganhou perfil num texto famoso assinado por Norman Mailer, justamente dedicado a Tyson quando na exuberância de sua carreira. O método psicológico de D"Amato era curioso: respeito pelo medo era seu lema. O medo ensina e, quando sob controle, torna-se o maior aliado do pugilista, acreditava. O medo desperta os sentidos e aguça a atenção. Era sua doutrina. Tyson chora ao lembrar que D"Amato morreu sem vê-lo se tornar campeão do mundo: "Perdi a minha referência", confessa.

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O filme desfaz também o mito de que Tyson fosse um intuitivo, que nada sabia de sua arte e havia chegado ao topo sem inspirar-se em ninguém a não ser em Cus D''Amato. Pelo contrário, sabemos pelo filme que Tyson assistia obsessivamente a filmes de lutas dos grandes pugilistas do passado, de Joe Louis a Muhammad Ali. Era um estudioso do boxe e o praticou como poucos até ser derrotado por um modo de vida incompatível com a carreira atlética.

Menino de rua, marginal, sem pai, mãe prostituta, criado em reformatórios, Tyson teve carreira meteórica. Era mais baixo e mais leve que a maioria dos pesos pesados. Mas, imensamente forte e rápido, não deixava ninguém reparar em suas desvantagens. Durante um período de tempo considerável foi imbatível. Massacrava adversários no primeiro round e parecia inabordável. Não foi o melhor de todos os tempos - perde de longe, em técnica e carisma, para Ali. Mas sua ferocidade talvez não tenha paralelo na história, mesmo se comparada à de outros grandes que vieram da miséria e da marginalidade como Sonny Liston. Tyson perdeu para si mesmo, para a vida promíscua, as drogas, o álcool, o próprio ego, e abriu a guarda ao perder a figura paterna de Cus D"Amato.

O filme é a história dessa tragédia pessoal. E assim, por paradoxo, o documentário torna-se um ensaio sobre a fraqueza do homem forte.

(Caderno 2, 29/1/10)

Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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