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Opinião|'Terra Firme' e a tragédia dos imigrantes

A recente tragédia na costa da ilha de Lampedusa, onde morreram cerca de 300 refugiados em um naufrágio dá macabra atualidade a este belo Terra Firme, de Emanuele Crialese. É dessa questão mesmo que ele trata - a Itália, que espalhou milhões de seus filhos pelo mundo nos séculos passados, agora não aceita acolher quem a procura em busca de vida melhor ou da simples salvação. Assim, tragédias marítimas se sucedem, com refugiados africanos tentando a sorte em embarcações precárias, que não raro afundam.

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Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

 

Terra Firme participou do Festival de Veneza de 2011, provocou emoção no público e saiu com um Prêmio Especial do Júri. Justa recompensa para um filme emocionante, muito bem feito e oportuno - sem jamais ser oportunista.

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Crialese, autor dos bons Respiro e Novo Mundo, mostra em Terra Firme uma ilha paradisíaca (nunca é nomeada como Lampedusa, mas a referência é óbvia), no qual costumes antigos começam a conviver com novos hábitos da sociedade do turismo em massa. Um velho marinheiro, com a ajuda do neto, procura manter a casa com a pesca artesanal. Seu filho, Nino, acha mais lucrativo usar o barco para passeios turísticos com os estrangeiros que começam a procurar a ilha. Na casa, espaçosa, aluga quartos para os visitantes.

O filme entra nesse primeiro tema, o do embate entre tradição e novos hábitos trazidos pelos negócios do século 21. Mas logo se vê que o verdadeiro dilema está por vir. E ele surge quando o velho salva imigrantes de um naufrágio na região. Ele os recolhe em seu barco, ciente de que deve comunicar o fato às autoridades. Denunciá-los. A partir de então, a história transforma-se em impasse moral. Que tem sido também o dos italianos diante do problema da imigração ilegal. O país se divide. Não falta quem atribua aos estrangeiros sem documentos responsabilidade pela degradação das cidades, desemprego e o declínio econômico do país. Os mais progressistas insistem que não se trata absolutamente disso. Pelo contrário, regiões mais desenvolvidas necessitam de mão de obra estrangeira, do contrário serão condenadas à estagnação.

Mas, claro, não se trata apenas de argumentação econômica. Há a questão humanitária, que para uns é fundamental e, para outros, irrelevante. Para a família siciliana Pucillo, pescadores geração após geração, não existe qualquer consideração teórica ambígua ou vacilo moral: entre uma legislação injusta e a velha lei do mar, ficam com esta. E o que manda a lei do mar? Que náufragos sejam salvos e cuidados, a despeito de qualquer outra consideração. O náufrago é sagrado.

É preciso que se diga que a questão dos imigrantes pesa na consciência moral italiana, pelo menos na daquela parte da sociedade capaz de olhar além do próprio umbigo. ComAmérica - O Sonho de Chegar, Gianni Amelio fez o filme definitivo sobre o assunto. No mesmo festival em que Crialese apresentou Terra Firme, outros se debruçaram sobre o tema. O veterano e consagradíssimo Ermano Olmi apresentou Il Villaggio di Cartone, sobre imigrantes escondidos por um padre no interior da sua igreja. Já o estreante Gian Alfonso Pacinotti imagina em L'Ultimo Terrestre uma invasão da Itália por alienígenas. Só que esses ETs, chocados com os hábitos truculentos dos terráqueos, logo abandonam o país.

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Crialese não mostra disposição para a sátira de Pacinotti ou para o humanismo cristão de Olmi. Monta um dispositivo dramático mais complexo e interessante, no qual interagem três realidades distintas: a dos habitantes da ilha, a dos turistas estrangeiros e a dos imigrantes africanos. Podem ser muito diferentes entre si, mas exibem pontos de contato. Por exemplo, no encantamento do jovem pescador por uma turista ou na maneira como duas mulheres, uma siciliana e outra africana, se entendem perfeitamente apesar de uma nada compreender do idioma da outra.

Há coisas que vão além das palavras. E outras se situam no campo da imagem, que fala muito, sem dizer tudo. Crialese é um esteta, cuida da imagem cinematográfica com zelo. Seu Terra Firme é impregnado de beleza visual, mas também de emoção e muita sinceridade. Mesclando atores profissionais e iniciantes, naturais da ilha, obtém um potente efeito de verdade com seu filme.

Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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