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Opinião|Spike Lee e o Katrina

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Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

Amigos, o canal HBO exibe hoje a primeira parte do documentário Quando os Diques se Romperam, de Spike Lee, sobre a devastação de New Orleans pelo furacão Katrina. Assisti ao filme de quatro horas e 15 minutos ano passado, em Veneza. Transcrevo o texto que escrevi então. As outras partes serão apresentadas pelo canal nos dias 10, 17 e 24/4. Abraços a todos e não percam pois o filme é impressionante.

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VENEZA, Itália - Para Spike Lee não foi o furacão Katrina que causou tantas mortes e destruição em New Orleans, um ano atrás - foi a incúria e o descaso humanos. O desinteresse do governo está por trás do destino dos negros e dos pobres, que foram atingidos por uma catástrofe natural. Esse tom político domina o vasto documentário "When the Leeves Broke: a Réquiem in Four Acts" (Quando os Diques se Rompem: um Réquiem em Quatro Atos), com exatos 255 minutos de duração, ou seja 4 horas e 15 minutos.

Nesse tempo todo, Lee ouve a palavra de sobreviventes e de algumas autoridades (entre elas, o prefeito de New Orleans, mas também Bush e Condoleezza Rice). Mostra cenas impressionantes de devastação e não poupa o espectador das imagens mais duras de cadáveres boiando no rio ou decompondo-se à luz do dia. Ou seja, faz o trabalho sujo que as emissoras de televisão não fizeram na época, ou mesmo depois de tudo o que Aconteceu.

Previsões a meteorologia eram bem claras Lee recorda que as previsões da meteorologia eram bem claras, o furacão que se aproximava tinha força máxima e nem por isso medidas de proteção foram tomadas com antecedência. Quando foram, já era tarde demais. Pelo menos para a parte da população que não tinha como fugir por conta própria, os pobres, velhos, os doentes. Esses foram ficando para trás e sofreram as conseqüências. Mostra também o durante e o depois, quando o socorro aos que ficaram ilhados não chegou a tempo, nem houve mantimentos ou remédios para todos que deles necessitavam. As cenas impressionam. Fora do contexto, pareceriam imagens vindas da África e não do país mais rico e poderoso do planeta.

"Essa é uma realidade que tomamos todo o cuidado de esquecer", diz Spike Lee. "A América é o país mais poderoso do mundo, mas existe muita pobreza dentro dela, e há uma coisa que precisa ser dita com todas as palavras: Bush não tem o menor interesse por essa parte da população, seja ela branca ou preta" afirmou na entrevista concedida em Veneza.

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Spike Lee disse que buscou realmente causar impacto político com esse filme. "O trabalho de reconstrução de New Orleans está todo ainda por ser feito; no ritmo que vai, não ficará concluído nem em dez anos", disse.

Filme passou na rede de TV HBO no aniversário da catástofe O filme foi exibido nos Estados Unidos dia 29 de agosto (quando se completou um ano do furacão) na rede de TV HBO e, segundo Lee, "causou grande embaraço a Bush e seu estafe". "Espero mesmo que se sintam incomodados e acelerem os trabalhos de reconstrução da cidade." Disse que, se pudesse, amarraria Bush e seu secretariado na cadeira e os obrigaria a ver aquelas imagens - "como naquela cena de ´A Laranja Mecânica´, de Kubrick".

O diretor de "Faça a Coisa Certa" disse ainda que os estragos do Katrina, junto com o "fiasco no Iraque", serviram para abrir os olhos da população americana para a realidade do governo Bush. "Acho que as pessoas se iludiram e reelegeram Bush na comoção do 11 de setembro e agora estão se dando conta do erro que cometeram", disse.

As mais de quatro horas do filme se dedicam a mostrar exatamente a indignação dos moradores de New Orleans com o descaso do governo diante da catástrofe. Katrina assume uma função tristemente didática, ao mostrar com muita clareza o caráter classista do governo federal norte-americano. "Bush governa para quem tem conta bancária alta e não para a maioria da população", denuncia o cineasta.

Cidade de Louis Armstrong e berço da música negra "When the Leeves Broke" não apresenta apenas momentos de devastação e cenas tristes. Há toda uma enorme seqüência dedicada à fantástica cultura de New Orleans, um melting pot de influências negras, indígenas e européias.

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É lá o berço da grande música negra e foi onde nasceu Louis Armstrong, um dos grandes músicos do século.

É lá que acontece o carnaval, o Mardi Gras, e onde as bandas acompanham os enterros com músicas tristes e voltam do cemitério tocando temas alegres. "Para mostrar que ficamos tristes porque a pessoa morreu e ao mesmo tempo estamos contentes e gratos por que a conhecemos em vida", diz um dos personagens.

Essa tradição tem também o sentido de que a vida segue, apesar de tudo. Impossível assistir a esse filme sem se indignar com essa história de descaso e, ao mesmo tempo, sentir-se apaixonado por aquela cidade e a sua gente.

Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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