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Cinema, cultura & afins

Opinião|Shame

Causou um certo espanto no Festival de Veneza quando o diretor de Shame, o britânico Steve McQueen (homônimo do ator norte-americano, morto em 1980) declarou que seu filme era político. É preciso olhar de perto tanto o filme como a declaração para perceber esse aspecto e concordar com o diretor.

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Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

Em aparência, a história pertence inteiramente ao âmbito da subjetividade, sem nada, nela, que faça adivinhar seu caráter de crítica social. O personagem principal é Brandon Sullivan (Michael Fassbender), um executivo irlandês que trabalha em Nova York. Brandon é viciado em sexo. Apanha uma garota atrás da outra, das disponíveis às profissionais. Se não tem ninguém, masturba-se e, numa noite, tenta uma experiência numa sauna gay.

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Além dos problemas com seu priapismo, Brandon tem também uma irmã pouco equilibrada Sissy (Carrey Mulligan), que pede para morar com ele durante algum tempo. Será um belo e fraterno compartilhamento de neuroses. Sissy é uma cantora da noite e tão sexualmente dependente quanto o irmão.

O filme acompanha a trajetória de Brandon (Fassbender) por uma Nova York noturna, cheia de atrações e oportunidades. A irmão Sissy (Carey) é uma cantora carente e promíscua. Há no ar um clima modernoso e um tanto impessoal na maneira como McQueen filma a cidade. Nessa Nova York pós-moderna, seus personagens se debatem sobre si mesmos sem que saibamos grande coisa do seu passado. Há uma alusão discreta de que a família veio da Irlanda e criou os filhos com dificuldades. Nada além disso, nada de revelador ou particularmente traumatizante. Boa opção, porque assim o diretor evita a tentação psicologizante de explicar o presente pelo passado, de forma mecânica.

Como também funciona bem o registro quase documental da Nova York noturna, em uma imersão no bas-fond chique da cidade. Claro, o cenário poderia ser qualquer outro, qualquer grande cidade do mundo ocidental. Talvez nenhuma delas simbolizasse o que McQueen queria dizer. Se existe um centro do mundo desenvolvido ele fica em Nova York. A cidade encarna, como nenhuma outra, esse mundo, como diz McQueen, das "possibilidades ilimitadas". Essa é a ideia de base das metrópoles em geral, e da maior das metrópoles em particular. Nela, você tem de tudo. Você pode se expandir e a seu ego em qualquer direção e de maneira incontida. Essa fantasia da totalidade parece ser o mal de Brandon, muito mais do que sua dependência do sexo. Esta seria, digamos, apenas um fenômeno secundário, um pequeno sobressalto diante dessa vertigem original.

A ideia de base era essa mesma, e se traduz na linguagem do filme. Submeter um personagem fraco (embora na pele de um macho-alfa) a todas as tentações possíveis, até que, exaurido, ele constate a sua derrota. Brandon enfrenta esse paradoxo: diante da possibilidade (ilusória) da liberdade absoluta, ele acaba por entender que não tem liberdade alguma.

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Nesse ponto entende-se a argumentação de McQueen, de que teria feito um filme político. Pela possibilidade de ter tudo, de adquirir tudo, do último gadget ao corpo de quem bem entende, tudo e todos, no fundo, perdem seu valor. Nessa relação histérica com a vida, quanto mais o personagem se satisfaz mais insatisfeito fica. É o grande paradoxo da sociedade desenvolvida, o seu grande vazio, afinal de contas. Shame é filme político, sim senhor.

(Caderno 2)

 

Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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