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Opinião|Sérgio Ricardo deixa um legado de engajamento social

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Soube há pouco da morte de Sérgio Ricardo. 88 anos, havia fraturado o fêmur, pegou covid-19 e uma insuficiência cardíaca o levou. Teve uma grande vida. Não faz muito tempo, escrevi sobre ele a propósito do lançamento do seu último filme, Bandeira de Retalhos (disponível em Youtube.com/sergioricardoartista).

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Nascido em Marília com o nome de João Lutfi, e radicado há muito tempo no Rio, Sérgio foi artista múltiplo. Músico, escritor, cineasta. É dele a trilha de clássicos do cinema nacional como Deus e o Diabo na Terra do Sol e O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro, ambos de Glauber Rocha, entre muitas outras colaborações. 

Irmão do mitológico câmera e diretor de fotografia Dib Lutfi (de Terra em Transe), Sérgio é erroneamente tido como compositor exclusivo de músicas politicamente engajadas. Engano. A belíssima e romântica Folha de Papel pode ser ouvida em gravação de Tim Maia.

 Sérgio também foi alvo de uma gigantesca vaia no Festival da Canção de 1967 ao defender seu samba Beto Bom de Bola,  pouco agradável ao público. Irritado com a reação, quebrou o violão e o arremessou contra a indócil plateia. Anos mais tarde, no princípio da década de 1990, escreveu uma autobiografia precoce e lhe deu o título de Quem Quebrou meu Violão. Me lembro de ter lido esse livro e inclusive escrito uma matéria sobre ele no Estadão. Depois vou atrás e, se for possível, coloco o link aqui. 

Sérgio teve uma trajetória forjada nas ideias do Centro Popular de Cultura da UNE e nas lutas políticas dos anos 1960. Ideias engajadas e de esquerda. Ao se aproximar do cinema, dirige o curta O Menino da Calça Branca em 1961 e o longa Esse Mundo É Meu em 1963. Ambos foram recuperados em DVD da Lume em 2013, e permitem visualizar os méritos e o didatismo de um certo modo do fazer cinematográfico no Brasil. Em 1974 realiza, com música de Alceu Valença e Geraldo Azevedo, o alegórico e anárquico A Noite do Espantalho

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 Esse retorno tardio com Bandeira de Retalhos, aproveita a sua própria experiência de vida. Morador do Morro do Vidigal há muitos anos, Sérgio Ricardo havia testemunhado, em 1977, uma tentativa de desocupação forçada e a reação da comunidade, em pleno regime militar. O motivo alegado pela prefeitura do Rio era a ameaça de deslizamento de terras. Por trás, havia o interesse em "limpar' o terreno e lá construir um hotel de luxo com magnífica vista para o mar oferecida aos turistas. 

O filme já fora antes uma peça de teatro encenada pelo grupo Nós do Morro. Refaz a luta comunitária pela moradia e a entremeia com a trágica história de um triângulo amoroso cujo pólo é a bela Tiana (Kizi Vaz). Pessoas da comunidade e da ONG Nós do Morro atuam no filme e contracenam com atores famosos como Antônio Pitanga, Babu Santana, Bemvindo Sequeira e Osmar Prado. Há também um bom aproveitamento de material de arquivo, registros televisivos da tentativa de desocupação do local em 1977. 

Como se vê, a temática deste filme testamento traça um arco de convergência entre o artista idoso e o jovem dos anos 1960, envolvido na causa da emancipação popular. Coerente até o fim, virtude não muito comum no Brasil. 

Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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