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Opinião|Retorno a Ítaca

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Foto do author Luiz Zanin Oricchio
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Retorno a Ithaca aborda o dilema entre ir e ficar, muito conhecido de quem vive em Cuba. O país apostou alto em uma sociedade igualitária, mas tropeçou no autoritarismo e caiu no pesadelo do "período especial" após o fim da União Soviética. Período especial é uma expressão de eufemismo para alguns anos do início da década de 1990 quando, já sem os subsídios que vinham da mãe-pátria do socialismo, Cuba via-se numa carência material completa. É disso, entre outras coisas, que falam os amigos num terraço Havana, reunidos em torno da volta de um deles, Amadeu, após 16 anos morando na Espanha.

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Como se dá que um diretor francês, como Laurent Cantet, se mostre tão familiarizado com o estado de espírito dos cubanos? Explica-se: o roteiro é baseado novela de Leonardo Padura, um dos melhores escritores cubanos da atualidade, autor de O Homem que Amava os Cachorros, livremente inspirado nos anos finais do revolucionário Leon Trotski, assassinado no México. O roteiro é escrito por Cantet e Padura.

O filme é cubano autêntico como um puro charuto Montecristo.Expressa, de maneira perfeita, o dilema cubano. Ir-se, porque a situação do país é sempre muito difícil, tanto do ponto de vista material quanto das liberdades individuais. Ou ficar, porque, afinal, Cuba pode ser tudo, mas não é um país banal - tem cultura própria muito forte, o que provoca nos expatriados sensação de desamparo e de quem perdeu o solo e as referências fundamentais.

Nesses poucos personagens há como um microcosmo do drama cubano. Amadeo (Néstor Jiménez), ex-promissor romancista, volta porque fora do seu solo não consegue escrever. Tania (Isabel Santos) é uma oftalmologista cujos filhos, de Miami, lhe mandam dinheiro porque é impossível viver na ilha com seu salário. Aldo (Pedro Julio Díaz Ferran) é um engenheiro que vive de fabricar baterias artesanais com restos de peças. Rafa (Fernando Hechavarria) é um ex-rebelde e pintor frustrado. E Eddy (Jorge Perrugoría) deu-se bem dizendo amém ao regime. Vendeu-se.

Todos foram jovens, todos sonharam e todos viram seus sonhos transformarem-se em poeira. Encontram-se na meia-idade e, com exceção de Aldo, não acreditam mais em nada. Mesmo Aldo, cujo filho adolescente sonha em deixar o país, sabe que sua esperança é mais autoengano que outra coisa qualquer.

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O filme toma a forma de acerto de contas de uma geração que sonhou, apostou alto e perdeu. E, mesmo assim, preserva sua dignidade porque, de uma forma ou de outra, tentou viver algo que ia além da mera sobrevivência individual. Participou de um projeto coletivo que faliu. Claro que o desfecho é melancólico. Mas deixa no ar uma última questão: é melhor sonhar e despertar ou viver e morrer sem nunca ter sonhado?

 

Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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