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Cinema, cultura & afins

Opinião|Resnais, razão e emoção

Aos 87 anos, Alain Resnais está na moda. Em novembro de 2009 ele foi capa da Cahiers du Cinéma. Na edição de dezembro, que tradicionalmente elege os melhores do ano, seu Les Herbes Folles ocupou o primeiro lugar na votação dos críticos da revista fundada por André Bazin. Em São Paulo, Les Herbes Folles, aqui traduzido como Ervas Daninhas, está em cartaz ao lado de outro dos seus filmes, Medos Privados em Lugares Públicos, este no cinema desde julho de 2007. Fenômeno raro, aliás raríssimo, em tempo de reciclagem cinematográfica acelerada, quando os lançamentos permanecem uma ou duas semanas em cartaz e depois somem de vista para todo o sempre. Surfando na onda cult de Resnais, o Espaço Unibanco, na Sessão Cinéfila que realiza aos sábados, vem promovendo uma ótima retrospectiva de Resnais. Dia 30 será apresentado Stavisky, ou o Império de Alexandre. E dia 6/2, será a vez de Meu Tio da América.

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Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

Quem é esse cineasta, sempre citado em conversas cultas, porém distante dos bate-papos mais amenos sobre cinema? Bem, sempre que foi preciso defini-lo, dizia-se que Resnais era o cineasta do tempo e da memória. Afinal, aquela que, para muitos, é considerada a sua obra-prima, O Ano Passado em Marienbad (1961), faz dessas duas dimensões seu principal "objeto". Mas o tempo e a memória também parecem estar na essência de Hiroshima, Meu Amor (1959), Muriel ou Tempo de um Retorno (1963), Providence (1977) e tantos outros. Esses termos formariam uma espécie de matriz simbólica da obra de Resnais - a angústia do devir e a impressão que a vertigem do tempo causa na volátil memória humana.

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Essa definição inicial não é falsa. Pelo contrário. Mas tampouco é completa. Acontece que, em seus trabalhos mais recentes, Resnais, sem deixar de lado suas obsessões, deslocou o eixo temático para a esfera dos relacionamentos amorosos. O que talvez explique a incrível permanência em cartaz de um filme nada convencional como Medos Privados em Lugares Públicos (2003). A história é baseada na peça Intimate Exchanges, do dramaturgo inglês Alan Ayckbourn (de quem Resnais já adaptara Smoking No Smoking em 1993). Entrou em cartaz em julho de 2007 e continua até hoje numa sala do Cine HSBC Belas Artes.

O cineasta André Sturm, que faz a programação desse cinema, considera que, de fato, a carreira de Medos Privados no Brasil é um fenômeno de permanência. "Domingo passado, depois de 2 anos e sete meses em cartaz, havia 57 pessoas na sala, na sessão das 14 h!" Sturm arrisca uma interpretação para o sucesso: "Talvez o motivo seja a maneira especial como ele trata os personagens. Embora seja um filme triste, em que a vida dos personagens é pontuada por frustrações, como a vida de todos nós, tem uma generosidade, um carinho para com os personagens que é muito raro nos filmes. Não tem um final feliz, mas você sai bem do cinema. Acho que é essa a sua originalidade. Falar da vida como ela é e ser generoso, sem ser piegas."

Medos Privados cria uma Paris imaginária onde neva o tempo todo, e na qual uma ciranda amorosa movimenta as pessoas. No centro dessa agitação, o receio constante da solidão. Esse medo está no corretor imobiliário que vive com a irmã mais moça, no casal em via de separação mas ainda preocupado em encontrar um imóvel, na solteirona de discurso edificante porém obcecada por pensamentos eróticos, na mocinha que faz a ronda dos bares em busca de companhia masculina.

Dito assim, para quem não viu Medos Privados em Lugares Públicos pode parecer apenas uma amostragem dos encontros e desencontros amorosos, tais como eles se dão em nossa época, e, no caso, entre pessoas cuja idade já recomendaria uma certa prudência e sabedoria no trato dessas questões. Acontece que a delicadeza com que Resnais trata seus personagens e suas histórias vai de par com uma sutil opção estética, que se afasta de qualquer preocupação naturalista. A ambientação é artificial, fake como a Paris nevada e gélida que funciona como cenário.

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Em Ervas Daninhas também aparece, com menos personagens, esse tema do desencontro amoroso, um descompasso usual posto em cena por meio de uma situação pouco comum. Marguerite Muir (Sabine Azéma), vai comprar um par de sapatos. Na saída da loja, é assaltada por um ladrãozinho que lhe leva a bolsa. Mais tarde, um homem (Georges Palet, vivido por André Dussollier) encontra a carteira em um estacionamento e a entrega à polícia. A carteira volta à sua dona, que telefona ao homem agradecendo-lhe o favor. O homem, por algum motivo, torna-se obcecado pela mulher e passa a assediá-la.

Em termos básicos, é isso e pouco mais. A história às vezes parece banal e outras, inusitada. É natural a cumplicidade entre Marguerite, que é dentista, e sua colega de consultório, interpretada pela bela Emmanuelle Devos. Menos convencional é o hobby a que se dedica a dentista nas horas vagas, a pilotagem de pequenos aviões. Marguerite vive assim, entre a rotina e o desejo de vertigem. Seu relacionamento com Georges segue esse "padrão", se é que o termo cabe: é feito de negativas e de aproximações. Medo do desconhecido e atração pelas alturas.

Como não sabemos praticamente nada do passado dos personagens, Resnais veta o imediatismo de buscarmos causas para os seus comportamentos. Que não deixam de ser curiosos. Por exemplo, Georges Palet é um burguês bem-posto na vida, educado e articulado. Pode, às vezes, ser truculento, o que é uma dissonância. Essa disparidade pode ser vista aqui como um eco - ele mesmo dissonante - às teses behavioristas encarnadas por Henri Laborit em Meu Tio da América (1978). Em Ervas Daninhas, pelo contrário, a conduta humana parece errática e tão pouco previsível quanto os destinos da economia ou os resultados do futebol.

Tudo é aleatório em sua origem e depois passa a ser regido por um determinismo, mas cujas leis escapam à compreensão. As primeiras imagens dão corpo a essa série de ideias. A câmera passeia pelo mato que nasce entre as rachaduras das calçadas. Essas plantas brotam ali onde jamais se esperaria que formas vivas pudessem nascer e crescer. É um pouco o sentido do título do filme - e do livro em que se baseia, do romancista Christian Gailly. O inesperado. O inexplicável.

Nesse ponto, cabe uma observação. Em entrevistas concedidas à época do lançamento de Smoking No Smoking, Resnais disse que se sentia à vontade em adaptar peças de teatro para o cinema, pois as duas artes lhe pareciam afins. Perguntavam-lhe porque havia evitado até então trabalhar com romances e Resnais disse que a estrutura romanesca lhe parecia mais difícil de ser transposta para uma situação de imagens e diálogos entre personagens. O teatro seria mais "amigável" para com o cinema.

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No entanto, sentiu-se tentado a transpor um romance pela primeira vez ao ler o livro de Gailly. Considerado um escritor minimalista e original, Gailly propõe desafios evidentes ao cineasta que decidir enfrentá-lo. Sua prosa não é linear (mas o cinema de Resnais também não é), e as frases são construídas segundo ritmo próprio. Às vezes elas terminam pelo meio, e Gailly não se digna a colocar reticências para indicar ao leitor a interrupção. Para entrar no espírito do livro, Resnais deixou-se contaminar por esse ritmo assimétrico e pelas rupturas de tom propostas pelo escritor. Fiel ao procedimento que adotou desde o princípio da carreira, diz que tenta ser "Como uma esponja, impregnando-se do roteiro para que este, depois, possa emergir sob a forma de um filme".

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É dessa maneira que Resnais encontra a forma do seu longa-metragem. Não se importa de ser por isso chamado de formalista. Como costuma dizer, se o filme tem uma forma precisa, a emoção nasce com mais facilidade. Este é, portanto, um formalista sui generis, que jamais cai no cerebralismo vazio pois dirige tanto com a cabeça quanto com o coração. O que existe de misterioso em seus longas se lê com a inteligência da sensibilidade. É, diga-se de passagem, a melhor maneira de gostar deles.

Na verdade, Resnais está na moda há pelo menos 50 anos, desde que lançou Hiroshima Meu Amor e o mundo não soube direito o que pensar do filme e como classificar seu criador.

(Cultura, 24/1/10)

Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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