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Opinião|Racismo e condição proletária em 'Um Limite entre Nós'

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Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

No começo de Fences - Um Limite entre Nós, ouvem-se as vozes de dois homens conversando. Na verdade, um fala muito mais do que o outro. São dois lixeiros que trocam ideias ao voltar para casa, pendurados no caminhão de limpeza.

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Aliás, fala-se muito ao longo deste filme. Nos primeiros 15 minutos, mais ou menos, chega-se a ficar tonto com a logorreia de Troy Maxson, vivido por Denzel Washington, que também dirige o filme. Troy fala, fala e fala.

Quem é ele? Descobrimos aos poucos que jogava muito bem beisebol, mas já era um veterano quando os negros começaram a ser aceitos nas principais equipes. O tempo passou para ele e agora ganha a vida na coleta de lixo do município. Profissão digna, indispensável, mas que talvez não estivesse nos sonhos de Troy. Em todo caso, ele agora deseja subir na carreira: ser motorista de caminhão, ao invés de apanhar as latas. E se queixa de que aos negros são dadas poucas chances de conduzir o veículo.

Essa frustração de base imanta todo o filme em torno de Troy. Cheguei a pensar em uma direção egoica, que lhe deu um protagonismo absoluto em detrimento dos outros. Mas, de fato, ele brilha. E, do fundo de um personagem antipático, escava uma empatia crescente, tanto que acabamos gostando dele e, sobretudo, entendemos suas razões. Troy é atraente, como costumam ser os derrotados. Estamos nos anos 1950, em Pittisburgh, e as lutas pela igualdade racial mal começaram. Mas a briga de Troy é outra. É contra si mesmo, contra um destino que ele não conseguiu domar. E contra todos os que lhe são próximos.

Predominam os diálogos, em geral muito duros, de Troy com seus filhos. Um deles, Lyons (Russel Hornsby) tem 34 anos e o visita em busca de algum dinheiro. O outro é um adolescente, Cory (Jovan Adepo). E com este é que Troy terá sua conversa mais áspera. Tanto que chega a ponto de ser inacreditável. Ele pergunta ao filho se ele acha que o sustenta porque gosta dele? Não. É porque faz parte de sua obrigação. Seu dever. Amor não tem nada a ver com isso.

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A figura doce em sua vida é Rose, Viola Davis, extraordinária no papel que lhe deu um Oscar. A dureza de pedra do marido encontra nela o contrapeso, que tenta ser como um amortecedor entre pai e filhos. Viola encarna a figura da conciliação para manter a família unida. Será ela também quem terá o gesto de grandeza mais tarde em relação a Troy - um tipo moralmente inflexível com os outros, porém bastante maleável em relação à sua própria conduta. Moralistas costumam ser assim mesmo.

O filme é baseado na peça de August Wilson, que também assina o roteiro. Propõe uma imersão muito intensa no proletariado afro-americano daquela época. Troy Maxson é essa encruzilhada de contradições. Sofre o apartheid de classes com acréscimo do racismo; seus valores, no entanto, são os do sucesso e, diríamos hoje, da "meritocracia".

Tudo somado, tem-se a receita para produzir um ser frustrado e infeliz. Mas ele está embrutecido demais pelo próprio sofrimento para perceber sua condição. Dos pobres, que nada têm, a sociedade tira um pouquinho a mais.

É o que chamam de terra das oportunidades. Só porque algumas exceções conseguem superar as desvantagens do meio não significa que o mundo seja justo. Muito pelo contrário. Tipos como Troy e também seus filhos são preparados para o fracasso e não para o sucesso. Cercas (Fences) o nome original da peça, e do filme, estabelece esse limite ilusório de segurança que faria da família a defesa final contra a hostilidade do meio. Sabe-se que não é bem assim.

Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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