PUBLICIDADE

Foto do(a) blog

Cinema, cultura & afins

Opinião|Questões para o cinema político

Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

Amigos e amigas: sábado passado publicamos no Caderno 2 uma reportagem sobre cinema político. Neste sábado, a Mostra promove debate sobre o tema e lança livro, organizado por Álvaro Machado, com entrevistas com diretores desse gênero, ensaios, etc, editado pela Cosac Naify. Na matéria de sábado, foram propostas cinco questões a pensadores como Walnice Nogueira Galvão, Olgaria Matos e Renato Janine Ribeiro. Estou reproduzindo a matéria, para servir de subsídio a quem se interessar pelo tema e quiser acompanhar o debate. Será no sábado, às 19h, no Clube da Mostra, que fica no 6º andar do Shopping Frei Caneca. Estarei na mesa. Texto:

PUBLICIDADE

A Retrospectiva Cinema Político Italiano representa uma iniciativa importante da Mostra de Cinema. Em primeiro lugar, claro, pela qualidade dos filmes programados. Em segundo, pela ocasião, oportuna, em que essas obras podem ser vistas ou revistas. Não se fala nem no óbvio momento que atravessa o País, com as eleições mais acirradas da fase posterior à redemocratização. Essa é uma contingência. Política, claro. O que a mostra pode revelar, como se isso ainda fosse necessário, é que a política é um daqueles assuntos sérios demais para permanecer na mão de especialistas. Vale dizer: é assunto de todos nós, coletivamente, pois a todos afeta. E o leque que se abre a partir dessa rubrica parece bastante amplo para abranger uma variedade de temas e assuntos. Por exemplo, Bernardo Bertolucci, em seu clássico Antes da Revolução, usa um alter ego para discutir a questão crucial de um jovem hesitante entre o comodismo da vida pequeno-burguesa e o salto no escuro da revolução. O Caso Mattei, de Francesco Rosi, trata de uma aparente conspiração pelo domínio da empresa estatal que controla o petróleo italiano - um conflito entre interesses nacionais e multinacionais. O também clássico A Classe Operária Vai ao Paraíso, de Elio Petri, reflete sobre as condições de trabalho na sociedade capitalista. Seriam temas políticos de manual: as expectativas de uma ruptura; os interesses do capitalismo internacional; a alienação no trabalho. A estes se agrega outro tema, a especulação imobiliária criminosa, ponto de partida de As Mãos sobre a Cidade, de Francesco Rosi. Os interesses eleitorais dos partidos políticos impedem que se encontrem os culpados pela construção de um edifício popular em Nápoles, que desabou e provocou várias mortes. É também política a contingência que faz do dinheiro algo mais importante que a vida humana. Mas a mostra avança também por temas menos "tradicionais" e que nem por isso deixam de ser políticos, em seu sentido profundo. Em Um Dia muito Especial, para muitos a sua obra-prima, Ettore Scola evoca o tempo de Mussolini para tentar entender o que poderia significar a condição homossexual - e a condição feminina - naquela época de machos de direita triunfantes. O mesmo Scola, em Feios, Sujos e Malvados, mostra como vivem os párias da sociedade italiana. Nessa visão sem atenuantes do lumpenproletariat, o humanista Scola sugere que as condições muito árduas da existência levam à perda do mais elementar sentido de solidariedade. Também é de Scola a idéia original de acompanhar o transcurso do tempo histórico, e as mudanças que ele acarreta, numa única locação, um salão de danças, e sem diálogos. É esse o ambiente de O Baile. Giuliano Montaldo descreve um caso judicial, a condenação de Sacco e Vanzetti, culpados menos pelas evidências das provas do que pelo simples fato de serem anarquistas vivendo em época e local inadequados. Em Pai Patrão, talvez o filme mais famoso e inspirado dos irmãos Paolo e Vittorio Taviani, temos, em aparência, algo que é de domínio privado e não público: a educação extremamente severa que um pai inflige ao filho e como este consegue se libertar através da cultura. Quando vemos de perto, percebemos que o meio, a aspereza das relações e tudo o que conforma a estrutura de uma organização social, aparecem nas dobras dessa aventura de realização pessoal. É a Itália profunda que aparece no filme, para quem quiser vê-la. No final das contas, o caráter "político" do cinema depende tanto da sensibilidade social do artista quanto do olhar do espectador. Como sugerem os nossos entrevistados, a política no cinema é um pouco como o sertão de Guimarães Rosa: está em toda parte.

Confira os filmes da Retrospectiva Cinema Político Italiano, da 30.ª Mostra,no site www.estadao.com.br

Investigações sobre um Certo Gênero: cinco perguntas para três pensadores

1 O cinema comercial hoje em dia é mais voltado para o entretenimento do que para a reflexão e o distanciamento crítico. Nesse quadro, haveria espaço para o cinema político, como houve nos anos 60 e 70? Walnice - Perfeitamente, e temos abundância dele vindo de todos os quadrantes. Justo porque o cinema se tornou exclusivamente entretenimento, é muito mais urgente hoje ressuscitar o cinema político, e a essa tarefa se dedicam cineastas de diversos países. Janine - Fica difícil, mas olhemos abaixo da superfície. Nove Rainhas é um filme político? A história toda parece ignorar a política, mas o filme mostra um país em forte crise ética, com todo tipo de trambique, culminando na quebra de bancos. O Filho da Noiva é mais explicitamente político - aliás, a única falha nesse filme é que ele é coisas demais, padece de um certo excesso. Para ser político, nenhum desses filmes precisava falar de Menem, dos militares, etc. Olgária - Se o filme é bom, ele atende à sensibilidade e à consciência, bem como ao entretenimento.

Publicidade

2 Cite alguns dos seus filmes políticos preferidos, tanto nacionais como estrangeiros, e explique os motivos das escolhas. Walnice - Deveriam fazer parte do currículo do ensino médio: Queimada (para ensinar colonialismo), A Batalha de Argel (para mostrar quanto custa uma revolução), Z e Missing (sobre terrorismo de Estado), Operação Canadá, de Michael Moore (uma tremenda sátira, de morrer de rir, sobre o imperialismo norte-americano), Os Companheiros, de Monicelli (sobre classe operária e militância), Olga e Diários de Motocicleta (ambos sobre a formação do revolucionário/a). Dançando no Escuro e Dogville, de Lars von Trier (pela análise da crueldade a que as pessoas são sujeitas dentro das regras do jogo do sistema em que vivemos). Ken Loach com Riff Raff e Pão e Rosas (aulas sobre as durezas da vida dos trabalhadores, imigrantes ou não, nos países ricos). Como fecho de ouro para a lista: O Encouraçado Potemkin. E garanto que deixei de fora bem uns 20 de meus filmes políticos preferidos. Janine - Com o que eu disse, vou citar filmes não usuais: Corra, Lola, Corra mostra o empenho de uma jovem rica para salvar o namorado meio bandido e muito burro; são várias tentativas (isso, o fascinante) até que dá um resultado. Femme Fatale mostra a escolha que uma mulher - também nesse caso, criminosa - pode fazer de seu destino. Minority Report tem um pouco esse mesmo panorama, mas com idéias geniais, como a do controle do criminoso antes mesmo de ele cometer seu ato. Carandiru mostra as estratégias de sobrevivência e de redenção num quadro extremamente adverso. Nenhum deles talvez mencione o nome de um governante sequer, mas por que a política tem que se dar nos quadros do poder institucional? Olgária - A Batalha de Argel, e também esse filme do Costa Gavras que passou há pouco sobre os assassinatos em série do protagonista para alcançar o posto na empresa em que trabalha e eliminar os concorrentes (O Corte). No primeiro, toda a questão do império francês e o que a dominação e a opressão política gera, pela arrogância, prepotência e arbítrio, ressentimento e terror; o segundo, pelo diagnóstico amargo e lúcido das premissas e conseqüências de um estilo de vida no mundo contemporâneo que fazem dos ideais de solidariedade e fraternidade entre os homens uma obsolescência e como esquecemos, progressivamente, a razão de se viver junto em um espaço comum compartilhado de bem-estar material, moral e estético. Há tantas fitas, entre as mais recentes, Amantes Constantes, de Philippe Garrel, sugere que uma revolução não se caracteriza pela tomada violenta do poder, mas transformação de consciência e de desejos, instituição de novos valores, etc. Ou então Estamira, que é uma das fitas mais comoventes, ninguém pode permanecer externo ao que vê, ele faz parte dessa configuração espiritual que pode contribuir a fazer de nós pessoas melhores diante da generosidade das pessoas simples que transfiguram, por sua alquimia, dor em beleza e as distribui para o mundo.

3 O filme político deve ser explícito para ser eficaz (como por exemplo Fahrenheit - 11 de Setembro, de Michael Moore) ou há espaço para a sutileza nesse gênero de filme? Walnice - Há lugar para ambos, os explícitos e os sutis (que são numerosos). Janine - Penso que a explicitação excessiva não é necessariamente útil. Moore é criticado por encaixar demais os fatos no seu esquema. Penso que o que faz político o cinema é ele ajudar a pessoa a se sentir e fazer ativa e não passiva. Isso nem mesmo precisa de uma narrativa sobre o poder. Sartre, muito tempo atrás, comparou um romance em que se falava o tempo todo do medo da catástrofe nuclear a outro que, sem mencionar sequer a bomba atômica, transmitia o temor que o primeiro livro não conseguia. Olgária - Quando o cinema ou outra realização cultural são literais, tendendo a reiterar padrões esperados, que não permitem sair do senso comum, freqüentemente criado no contexto informativo das mídias, sem não surpreender, pode, no limite, tranqüilizar nossa má consciência, não tem grande interesse,responde mais a um público que é "mercado".

4 Existe quem diga que o cinema político anda fora de moda porque o próprio debate político na sociedade se esvaziou. Você concorda com essa idéia?

Walnice - Ao contrário, o esvaziamento pode provocar a reflexão política por parte do cinema. Basta ver a esplêndida safra de filmes políticos deste ano de 2006, provenientes de onde menos se esperava: dos EUA. Janine - O cinema político não precisa ser diretamente político. Dei um curso em Columbia University, em 2004, e pensei muito o que eu podia dizer sobre o Brasil que não fosse miséria, etc. Ora, o cinema brasileiro - como o argentino, como outros - tem tematizado situações em que um indivíduo ou um grupo se vê diante de um impasse, e o supera (ou não). Quando a crise envolve uma pessoa só, costumamos dizer que a questão é ética, e que é política quando envolve mais gente. Mas, sempre, está o princípio básico do político, que é a pessoa (individual ou coletiva) tornar-se sujeito de sua ação, em vez de ser joguete das circunstâncias. Isso vale para Femme Fatale, que em nada parece ser um filme político, como para Kamchatka, obviamente político, a comédia Nove Rainhas, o drama Bicho de Sete Cabeças, o filme Cidade de Deus e muitos outros. Olgária - Penso que o "cinema político", se for cinema, isto é, parte das belas-artes, nos faz pensar e elaborar esteticamente o nosso mundo externo e interno. Dizer que o "cinema político" anda fora de moda é como dizer que a música atonal ou dodecafônica, ou o nouveau roman e a literatura contemporânea puseram fora de moda o romance narrativo, ou então a arte da figuração envelheceu em razão do abstracionismo ou da arte conceitual. Se for bom cinema não envelhece, é datado e não datado ao mesmo tempo.

5 Já se disse que um cineasta eminentemente político, como Costa-Gavras, faz um cinema necessário, porém convencional na forma. Cinema político seria incompatível com invenção de linguagem?

Publicidade

Walnice - Não, por quê? Nada é incompatível com a invenção de linguagem (vide Eisenstein). Janine - Não vejo por que, a não ser que consideremos que deseja atingir um público mais amplo e, para isso, usa procedimentos de sucesso garantido. Mas isso vale para qualquer tipo de cinema. Olgária - Não poderia responder com segurança quanto à "invenção de linguagem", mas, em princípio, não necessariamente a "convenção" faz mau cinema, pode haver soluções desestablizadoras como na fita A Inglesa e o Duque, de Eric Rohmer, inverte o código do vencedor e do vencido, do povo-vítima e do aristocrata-mau-caráter, etc. Opera à maneira dos moralistas franceses do século 17, diz o inesperado, daí sua "eficácia".

Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.