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Opinião|Quarentena (22): Para suportar Bolsonaro Cia

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Atualização:

Começo meus dias com uma atividade bastante prosaica e insalubre: a leitura dos jornais. 

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Leio os três brasileiros - Estado, Folha e Globo - e mais o Libération, que agora assinei. Também dou uma olhada no El País e, às vezes, no New York Times. 

Claro, não leio tudo, senão não faria mais nada o dia inteiro. Dou uma folheada e seleciono as matérias que me interessam. Me informo sobre o estágio da covid-19 no Brasil e no mundo. Me atualizo com as últimas trapalhadas, ou ignomínias do governo. Leio alguns colunistas. Poucos. 

Ou seja, me enveneno, consciente de que preciso estar informado. Dizem que, para Hegel, a leitura de jornais era sua prece matinal, mas nunca encontrei confirmação dessa frase. 

Depois preciso encontrar antídotos. E não é raro que estes sejam fornecidos pelos mesmos jornais que inocularam o veneno. 

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Dou dois exemplos de hoje, mas essa experiência tem se repetido quase todo dia.  

Leio no Libé uma entrevista com o violinista Julien Chauvin, de quem nunca tinha ouvido falar. Bem, a entrevista é em torno de Antonio Vivaldi, o padre veneziano que deixou uma obra imensa. Que, no entanto, parece se resumir ao seu carro chefe: As Quatro Estações. 

Chauvin entende que há todo um mundo a ser descoberto em Vivaldi e não faz sentido a afirmação de que o padre veneziano plagiava a si mesmo. Numa prova de que os músicos podem ser maldosos entre si, Stravinski dizia que Vivaldi não havia composto 500 concertos, mas havia composto 500 vezes o mesmo concerto. "Bach faz igual e ninguém o acusa!", defende Chauvin. Apenas para violino, Vivaldi escreveu 220 concertos. 

Vamos tirar a prova. 

Aciono o Spotify e procuro por Chauvin. Encontro várias gravações e opto pelo Concerto para Violino em Dó Maior, a mais banal das tonalidades. Música dos deuses, sobretudo o Adágio. Termino a manhã em estado de graça. 

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Descubro ainda outra matéria no Libé. Uma reportagem dizendo que, durante a pandemia, a venda de audiobooks aumentou de forma exponencial. Leitura pelos ouvidos. Uma editora defende o formato. Diz mais ou menos o seguinte: as pessoas estão descobrindo o encanto de ouvir um texto magnífico numa voz magnífica. Fecham os olhos e se deixam levar pela musicalidade do texto. 

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Há algumas amostras disponíveis. Ouço uma delas, a parte inicial de A Peste, de Albert Camus. Acontece que acabei de reler esse clássico e quero ainda escrever sobre ele. Então, tenho bem de memória as palavras de Camus, a abertura do narrador, falando de sua cidade, Oran, na Argélia. Ouço o livro. E descubro que também é delicioso ouvir esse grande texto pela voz de um outro. Mas, me pergunto, será que aguentaria um livro inteiro ou me dispersaria? Taí uma experiência a ser feita um dia desses. 

Uma situação como a brasileira nos coloca numa situação subjetiva muito delicada. Confrontados com a barbárie, corremos o risco de nos rebaixarmos a nós mesmos, até como estratégia (errada) de enfrentá-la. 

A cultura, a arte, o pensamento, a empatia são ainda as formas mais seguras de nos prevenirmos contra a síndrome da brutalidade, que pode ser tão contagiosa quanto o Coronavírus. 

Precisamos enfrentá-los, mas usando o que nos faz diferentes deles. Há que preservar esse espaço sadio em nossa subjetividade. 

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Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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