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Cinema, cultura & afins

Opinião|Em tom de thriller, temas latentes da cultura do Irã

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Atualização:

Bem interessante este Procurando Elly, que mostra uma faceta pouco usual do cinema iraniano. Neste filme de Asghar Farhadi, vencedor de um Urso de Prata em Berlim, você não vai encontrar nenhuma história de criancinhas, mulheres oprimidas sob burcas, paisagens interioranas poeirentas ou metalinguagem - traços usuais do cinema do Irã desde que ele virou moda no começo dos anos 1990 com os trabalhos de Abbas Kiarostami e Jafar Panahi.

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Verdade que Panahi, em particular, já havia proposto uma trama urbana diferente, num thriller como Ouro Carmim, que participou do Festival de Cannes em 2003 e estreou comercialmente no Brasil. Em todo caso, os clichês colaram-se à produção iraniana e Procurando Elly vem para desmenti-las. Ou propor-se como exceção.

O que temos aqui são personagens jovens, daquela que se poderia chamar de classe média de Teerã. Modernos, abertos, alegres. Talvez de mentalidade mais avançada que a média de sua cultura - pelo menos aquela que supomos ser a do Irã, país do qual sabemos apenas o que se filtra através do preconceito ocidental e da nossa ignorância, pura e simples. Em todo caso, esse grupo de rapazes e moças bastante comum para nós.

Eles recepcionam um amigo, Ahmad, de volta após uma temporada na Alemanha, na qual se casou e se divorciou. Está solteiro. E talvez triste. Então, a incursão para o fim de semana na praia inclui também uma moça desacompanhada, justamente a Elly do título. Ela própria tem alguns problemas.

O filme é bem conduzido desde o início. Tem o que poderiam se chamar de tempos mortos mas, por paradoxo, expostos com vivacidade e clareza. Há o deslocamento em vários carros para a praia, um problema com a hospedagem, a decisão de ocuparem uma casa meio precária, mas a beira-mar; em seguida, os jogos de adultos, as brincadeiras de crianças, porque tudo é feito em clima de família. Nada prepara para o corte brusco, quando ocorre um acidente, alguém quase morre e outro alguém desaparece.

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O clima em que se desenvolve a busca passa a ser muito tenso. Surpreende a maneira como a pessoa desaparecida é procurada, quando a questão principal parece não mais ser a de tomar qualquer providência prática mas sim apurar de quem é a culpa pelo que aconteceu. No âmbito do cinema, parece evidente o diálogo com A Aventura (1960), uma das obras-primas de Michelangelo Antonioni, cuja estrutura dramática se deve ao desaparecimento de uma moça, Anna (Lea Massari) durante a excursão a uma ilha vulcânica.

Antonioni tinha outras preocupações em mente, entre as quais a alienação da burguesia italiana no vazio do pós-guerra. Podia, também, se dar ao luxo de ser mais alusivo e deixar o discurso cinematográfico mais solto, pontuado por subentendidos e elipses. Enfim, há mais claros e espaços livres na maneira como o discurso cinematográfico se articula sob a batuta do mestre italiano.

Aqui, se o tema se aproxima, motivações e inclinações estéticas diferem. Farhadi parece usar a história menos para falar da solidão burguesa dos personagens do que para ilustrar os temas recorrentes da culpa e do conservadorismo moral. E aí, então, traços da sociedade iraniana parecem se precipitar na trama - e não apenas pela informação visual mais óbvia de que as mulheres, mesmo modernas, mantêm os cabelos presos e escondidos mesmo no banho de mar.

Há algo nele como um resto de fundamentalismo, que vem à tona nessa tragédia marítima. Vidas que não conseguem se resolver e caminham para um desfecho atroz porque um compromisso não pode ser rompido. Ou é a honra machista que, num determinado momento, parece mais importante do que todo o resto. Essa análise - é bom frisar - vem embalada numa narrativa que não perde o interesse em momento algum. Ela flui.

(Caderno 2, 11/1/10)

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Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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