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Opinião|Paulo José: ele é um bicho de cinema

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Foto do author Luiz Zanin Oricchio
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 Foto: Estadão

Ele foi um padre que pecou por amor, quis ter todas as mulheres mas ficou com uma só, deu vida a um herói sem nenhum caráter, e terminou como nacionalista radical; morreu bêbado no mar da Bahia e terminou reencarnado em artista de circo que discute a profissão com o filho em crise. Paulo José Gomez de Souza, ou simplesmente Paulo José, gaúcho de Lavras, um dos atores mais completos e complexos da cena brasileira, deu vida a todos esses personagens e a muitos outros mais.

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Paulo trabalhou em teatro e televisão, mas é no cinema que se sente melhor, "em casa", como diz. E, sentindo-se bem, foi protagonista de filmes como O Padre e a Moça (Joaquim Pedro de Andrade, 1965), Todas as Mulheres do Mundo (Domingos Oliveira, 1966), Macunaíma (Joaquim Pedro, 1969) e Policarpo Quaresma (Paulo Thiago, 1998), entre muitos outros. Agora "vive", por assim dizer, o ébrio defunto Quincas Berro d'Água, no novo longa de Sérgio Machado, e está filmando O Palhaço sob a direção de Selton Melo, com quem contracena. Paulo José é uma usina de força e criatividade. E de humor. Tira de letra o Mal de Parkinson, com o qual convive desde o início dos anos 1990. "Ele brinca com o assunto - diz que sofre de Parkinson de diversões", conta Selton Mello.

O encontro com Paulo José se dá em Campinas, onde ele se hospeda durante as filmagens de O Palhaço. O filme se distribui entre algumas locações da região. Uma delas, uma fazenda abandonada, uns 40 quilômetros fora da cidade. Outra, nos estúdios da vizinha Paulínia, onde um circo cenográfico foi montado. Mas hoje ele está de folga. E convida o jornalista para jantar num restaurante de hotel.

Conversar com Paulo é sempre algo muito agradável. Pela inteligência, pela generosidade com que se entrega às perguntas, pela maneira franca e direta como aborda qualquer assunto. Pela originalidade das respostas.

Por exemplo, quando se pergunta a ele como foi interpretar um morto em Quincas Berro d'Água, relato que Sérgio Machado adaptou do conto de Jorge Amado, ele sai-se com esta: "Ora, um morto tem expressão, por isso não poderia ser substituído por um boneco, como quiseram fazer, para meu conforto". O caso do boneco é engraçado. A história de Quincas, se você não sabe, é a de um famoso beberrão da Bahia, que morre e é velado por seus companheiros de farra. Lá pelas tantas, já tocados pelo álcool, os amigos resolvem levar Quincas a passeio pela noite de Salvador, convencidos de que ele de fato não morreu. Está inerte apenas porque teria bebido além da conta. E lá vão eles, pelos bares e bordéis da Bahia, com o cadáver nas costas. A produção achou que um boneco substituiria o ator em boa parte das cenas. Mas Paulo não gostou. "Tudo ficou muito mecânico, artificial, e assim só usamos o boneco numa cena em que o personagem despenca do segundo andar de uma delegacia de polícia", conta, morrendo de rir.

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O diretor Sérgio Machado admite que o ator tinha toda a razão. "Ele interpreta um morto, mas há nuances, sutilezas impressionantes nessa atuação." Paulo está certo porque toda a graça do relato de Jorge Amado reside mesmo na ambiguidade. Quincas está morto ou não? Os amigos estão bêbados ou o defunto vive? Uma atuação mecânica tiraria todo o encanto da história. Para preservar essa magia, apenas o engenho e arte de um grande ator. O resultado, o público poderá conferir em abril ou maio, quando o filme entra em cartaz, talvez passando antes pelo Festival de Cannes.

Outro exercício de sutileza está sendo feito por Paulo na filmagem de O Palhaço. Ele e Selton Melo são pai e filho, ambos palhaços do Esperança, um desses circos miseráveis que vivem mambembeando pelo interior do país. Circo precário, daqueles que nem animais têm, "só os cachorros", uma caravana precária, que estaciona nas praças das cidadezinhas ou em fazendas que dão acolhida aos artistas. Paulo José e Selton Mello são Valdemar e Benjamim, a dupla de palhaços Puro Sangue e Pangaré, que mantêm um relacionamento complicado. "O Paulo é muito doce, uma figura tão amigável que tive de insistir com ele para notar a dureza da relação entre o Valdemar, que é autoritário, e o Benjamim, um artista jovem e em crise; mas assim que ele compreendeu o papel, conseguiu uma interpretação impressionante", diz o diretor.

Impressionante é o termo empregado sempre que alguém fala das atuações de Paulo José no cinema. A começar pela primeira, consagrada pela crítica, em O Padre e a Moça, de Joaquim Pedro de Andrade, filmado em Minas Gerais a partir de um poema de Carlos Drummond de Andrade. "O que você lembra dessa filmagem, Paulo?" "Lembro de tudo, ora", como a dizer que não tem qualquer problema de memória. Mas o sentido é outro e o que Paulo afirma é que a filmagem havia sido tão intensa e marcante que seria impossível esquecê-la. Havia Helena Ignês, jovem, loira e bela, a musa do Cinema Novo, no papel da moça. Havia Minas e sua magia dura e seca. E havia o rigor de Joaquim Pedro, cineasta que se inspirava muito no mais rigoroso dos diretores, o francês Robert Bresson (1907-1999). "O Padre e a Moça é um diálogo com Diário de um Padre (1950), que o Bresson adaptou da obra de Bernanos", diz. Recorda também que o rigor da filmagem dependia da precisão matemática da fotografia, a cargo de Mario Carneiro (1917-2008), "um artista da luz, alguém que havia sido formado pelas artes plásticas". O que é exato. Mário, que teve a pintura como primeira ocupação, foi o nosso fotógrafo com maior consciência do seu métier. "Com tudo isso junto, O Padre e a Moça é um filme que não envelheceu". Modesto, Paulo José se esquece de apenas uma coisa - sem ele, o longa-metragem de estreia de Joaquim Pedro não seria o mesmo. Não seria nem mesmo possível.

Pergunto se ele, que vinha do teatro, tivera alguma dificuldade de adaptação modo de trabalho do cinema, muito diferente, em tese. "Nenhum", responde. "Vinha já com a experiência do Teatro de Arena, no qual usávamos muito o método de Stanislavski, de interiorização do personagem; por isso, quando fui trabalhar com o Joaquim Pedro, estava preparado para o tipo de cinema que ele queria fazer".

Outra experiência fundamental no início da carreira cinematográfica foi o trabalho com Domingos Oliveira, com quem fez Todas as Mulheres do Mundo, contracenando com a musa Leila Diniz. "Era o contrário do Joaquim, com seu rigor; com o Domingos, tudo era mais solto, um cinema do improviso". Jazzístico, como o de John Cassavettes?, pergunto. "Isso mesmo, e havia também Leila, que era um ser solar." Na época, Leila e Domingos já estavam separados. "O filme era uma tentativa de reconciliação do Domingos com a Leila, que acabou não dando certo, porque ela já estava em outra". Paulo lembra que alguma cenas eram tão abertamente autobiográficas que o cineasta, depois de dirigi-las, chorava. Com Domingos, ele fez também Edu, Coração de Ouro, no ano seguinte.

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Dois anos depois, Paulo José voltou a trabalhar com Joaquim Pedro, em outro filme, este bem diferente de O Padre e a Moça - Macunaíma, um ensaio tropicalista e antropofágico cozinhado em plena ditadura militar. Aliás, num ponto bem preciso da ditadura, a época do AI-5, quando todas as liberdades e garantias individuais haviam sido suspensas pelo ato do regime. Como todo mundo, na época, Paulo participou da resistência ao autoritarismo. Uma resistência cultural, da qual Macunaíma fazia parte. Era uma imersão na cultura nacional, no Brasil profundo, através dos seus mitos de formação. Mas incorporava dados da atualidade, como a guerrilha urbana. Paulo é o Macunaíma branco que namora a guerrilheira - Dina Sfat (1938-1989), sua mulher na época, com quem teve as filhas Bel, Ana e Clara. Atualmente, Paul está casado com a figurinista Kika Lopes.

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Macunaíma foi grande sucesso de público. Um daqueles raros filmes que conseguem agradar tanto à crítica exigente quanto à plateia mais popular. Qual o segredo, Paulo? "Grande Otelo", responde sem pensar um segundo. Os olhos brilham ao falar do amigo, que ficou conhecido com as chanchadas da Atlântida e sua parceria com Oscarito, e depois atuou no Cinema Novo. "O Otelo era fantástico; foi uma audácia chamá-lo para fazer um filme do Cinema Novo. Ele vinha do cinema popular mas vamos lembrar que já estava com Nelson Pereira dos Santos em Rio Zona Norte, de 1957." Grande Otelo (1915-1993) dava o tom do filme de Joaquim Pedro; e esse tom o levava para o lado da chanchada. Paulo José entende que Macunaíma é um filme com várias camadas de compreensão. "Pode ser visto como reflexão profundo sobre o Brasil, e assistido como uma comédia popular num cinema do centro da cidade - quando estes ainda existiam." Esse é um segredo que só os grandes mestres detêm - agradar tanto ao erudito mais enjoado quanto ao porteiro do prédio. E, nesse sentido, nenhum deles foi maior do que Federico Fellini.

Falar em Fellini traz a conversa de volta ao tema do circo. Afinal, é dele o fantástico e comovente documentário sobre os palhaços, I Clown, que Selton e equipe viram e reviram para se preparar para a filmagem. Leram livros também e viram outros filmes relacionados com o assunto. Mas não se trata apenas disso. Sem se comparar a Fellini, que dizia ter sido sequestrado em criança por um circo que passava por Rimini (uma fantasia ou, digamos, uma mentira criativa), Paulo José se recorda do fascínio pelo picadeiro daqueles pequenos circos que visitavam sua Lavras natal, na campanha gaúcha. "Circos pobrezinhos, exatamente como o nosso Circo Esperança", diz. O fascínio da criança era total e, em particular, pela figura do palhaço. Hoje ele pode compreendê-lo. "O palhaço é uma máscara, diferente da máscara habitual das pessoas, que lhe permite dizer e fazer certas coisas que são proibidas aos outros; é como o bobo da corte, que pode falar verdades aos poderosos. Esse é o fascínio do palhaço".

Magia do picadeiro, magia do palco - ambas tão próximas. Essa atração nasceu na infância. Paulo conta que estudou em Bagé no Colégio Nossa Senhora Auxiliadora, dos padres salesianos. "O fundador da ordem, são João Bosco, de Torino, usava o teatro como instrumento de edificação para a juventude; eu entrei no colégio, no exame de admissão ao ginásio, e comecei a fazer teatro lá. E nunca mais parei. Minha família apoiava: minha mãe era declamadora e pianista. Ligada às artes."

Esse foi o ponto de partida de uma grande carreira, com passagem pelo Teatro Universitário (1955) e Teatro de Equipe (1958), ambos em Porto Alegre. Depois, Paulo buscou o eixo Rio-São Paulo, onde realizou os trabalhos que o fizeram conhecido nacionalmente.

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Volta e meia, Paulo retorna a sua terra natal. "Temos, eu e meu irmão, a fazenda da família, em Lavras, e gosto de passar uns dias por lá; é revigorante", diz. Além disso, ele gosta de trabalhar no Rio Grande do Sul, em especial com seu amigo, o diretor Jorge Furtado, para o qual fez a narração do mitológico curta-metragem Ilha das Flores (1989), além de ter trabalhado como ator nos longas O Homem que Copiava (2003) e Saneamento Básico (2007). Quanto lhe pergunto sobre Paulo José, Furtado não economiza palavras: "Para mim, é o maior ator do Brasil. Quero ainda fazer muitos filmes com ele".

Enfim, Paulo José está há mais de 40 anos na cena artística brasileira e não demonstra qualquer intenção de diminuir o ritmo. Além dos dois filmes ainda inéditos, dirige sua filha Ana Kutner na peça Ana Cristina César - ou um Navio no Espaço, sobre a poeta carioca que se matou aos 31 anos. Paulo trabalha, trabalha, trabalha. E não se queixa. Ele tem uma tese: a hiperatividade o ajuda a superar as sequelas do Parkinson: "Fiz uma cirurgia no ano passado com implante de um marcapasso, que melhorou bastante a minha condição; mas acho que o trabalho é o fundamental: como ele me dá muito prazer, aumenta a quantidade de dopamina no cérebro, e isso contrabalança os efeitos da doença". Que venha mais trabalho, portanto.

A conversa com Paulo José termina no dia seguinte, no set de filmagem. Depois de várias repetições de uma mesma cena, sob um calor escaldante, chega hora do almoço. Depois de comer, Paulo José me convida para acompanhá-lo ao trailer, onde tem ar refrigerado. Põe para tocar uma gravação. "É um ensaio preparatório para o papel", explica. Um monólogo, improvisado por ele, o palhaço-narrador contando o incêndio de um circo, no qual morreram centenas de pessoas (nota: baseia-se num fato verídico, o incêndio do Gran Circus norte-americano em Niterói, que causou centenas de mortes). Num determinado momento, ele interrompe a gravação e passa a dizer o texto. Fala de mortes, de crianças mortas, de sapatos abandonados, de gritos, de desespero. Não há qualquer apelo sentimental. A emoção está lá, contida, genuína; e é contagiante. Ele se interrompe e diz: "Engraçado, a origem desse filme é uma crise do Selton sobre o seu destino de ator; eu mesmo nunca tive qualquer incerteza sobre a minha vocação. Nunca". Alguém aí duvida?

(Esse é o texto integral do perfil de Paulo José que escrevi para o jornal. Por motivo de espaço, saiu abreviado no Caderno 2 de 15/3/2010) 

Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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