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Cinema, cultura & afins

Opinião|'Pardais' e outros bichos da 39ª Mostra

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Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Atualização:
Pardais, da Islândia, vencedor da 39ª Mostra Foto: Estadão

Eis aí - mais uma maratona vencida. Apesar de a Mostra prosseguir em sua repescagem, ela, para todos efeitos, já terminou. E com a devida premiação. O principal prêmio foi de Pardais, de Rúnar Rúnarsson, da Islândia. É sobre o relacionamento entre o adolescente e seu pai, que mora numa região remota da Islândia, separado da mãe. Uma região meio bruta, de homens machos, caçadores, bebedores fortes. Nada que corresponda às expectativas de um rapazola sensível. Enfim, é dessa aproximação problemática que o filme trata, e com a devida fineza. Gostei.

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Aliás, gostei, e muito, do Foco Nórdico proposto pela Mostra este ano. Claro, somos todos fãs de Bergman, etc. mas pouco conhecemos do que se faz naqueles países distantes, que tanto admiramos pela qualidade de vida, mas que, nos dizem, são frios, problemáticos, com tendências depressivas. Uma vez, a grande atriz norueguesa Liv Ullmann esteve no Brasil e nos disse: "Vocês não têm ideia de como é passar boa parte do ano no frio e sem luz solar". Como a dizer que deveríamos nos alegrar por nosso clima tropical e que nos convida à cordialidade, etc.

Enfim, divagações à parte, curti muito o Foco Nórdico. Gostei também de Ovelha Negra e outros filmes dos países da região. Fazem um cinema que merece atenção do nosso olhar.

Os medalhões, que vieram antecipados por críticas favoráveis, não me decepcionaram, como foram os casos da trilogia Mil e Uma Noites, do português Miguel Gomes, e mais um estupendo documentário do chileno Patricio Guzmán, Botão de Pérola. Mas a maior surpresa, O Ceifador, veio da Croácia, e do qual nunca havia ouvido falar. Votei nele na primeira rodada do prêmio da crítica, mas não avançou à fase final. Não ganhou nada na premiação, mas deixou uma lembrança indelével neste espectador.

Ainda falando da premiação, apreciei também o Prêmio da Crítica, dado pelos jornalistas de vários Estados do País, que cobrem a Mostra. Foi para Os Campos Voltarão, grande obra do imenso Ermanno Olmi. Cinema humanista e maduro, que não precisa ser ingênuo para se impor. Pelo contrário. É da dura constatação das coisas, no caso a guerra, que ele tira o seu lirismo possível. Um lirismo raro, da aspereza, do confronto da limitação do homem e da imensidão da natureza.

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Também gostei do prêmio dado pelos críticos da Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema), entidade à qual pertenço. Desde que foi fundada, a Abraccine forma júris próprios nos festivais e, nesta mostra, o júri (do qual não fiz parte, bem entendido) elegeu Aspirantes, de Ives Rosenfeld. Quando vi o filme, antes de saber que seria premiado pela nossa entidade, comentei com a minha companheira, Rô Caetano: por fim, o cinema brasileiro está aprendendo a filmar o futebol. A usá-lo como matéria prima de pesquisa estética, documental e ficcional. Antes, um ficcionista como Ugo Giorgetti (com seu Boleiros) era ave solitária. Agora, parece que mais cineastas entenderam que o futebol está entranhado na nossa cultura e, portanto, é matéria-prima de excelente qualidade. Nós que gostamos de cinema e também do jogo da bola, só podemos saudar que, em tão pouco tempo, dois belos filmes sobre futebol tenham aparecido - Campo de Jogo, de Eryk Rocha, e agora este Aspirantes. É um veio a ser cada vez mais explorado.

Outra premiação que gostaria de comentar é a de Sabor de Vida, de Naomi Kawase, conhecida por seu cinema espiritualista. Desta vez ela faz um cinema mais acessível, com a comovente história da velhinha que prepara uma pasta de feijão inigualável. Ela vai trabalhar numa lojinha de alimentos, mas a história, que poderia ter final feliz, toma outro rumo por causa do preconceito e da maldade das pessoas. Naomi faz um cinema pensativo, que dá tempo ao tempo e oportunidade para as pessoas refletirem sobre suas (nossas) vidas e maneira alienada como as levamos. No fundo, apesar de enredo tão simples, Sabor de Vida atinge nosso espírito no que ele tem de mais profundo e sensível. Impossível não se comover. E, por tudo isso, o filme faturou o Prêmio do Público. Bem merecido, por sinal.

Mas, enfim, a premiação é apenas o desfecho de um evento que toma praticamente um mês inteiro da cidade. No meu caso pessoal, posso dizer que aproveitei muito bem a Mostra deste ano. Assisti a exatos 60 longas-metragens, sem contar alguns da repescagem, que ainda pretendo ver. Para mim foi particularmente importante, já que sou profissional da área e, por motivos que não cabem aqui, este ano não fui a qualquer festival internacional. Desta forma, a Mostra garantiu uma atualização que de outra forma eu não teria. Foram quatro, cinco e às vezes até seis longas por dia. Dores nas costas, insônia e outros babados, como efeitos secundários. Mas valeu.

E valeu não apenas pelas descobertas de filmes novos, mas pela possibilidade de rever ou conhecer clássicos restaurados pela The Film Foundation, de Martin Scorsese. Citaria vários desses filmes, inclusive dois de Mario Monicelli que eu não conhecia: Ladrão Apaixonado (Risate di Gioia) e Filhas do Desejo (Vita da Cani). Exuberantes! Mas inesquecível e surpreendente, sob todos os aspectos, é Caminho para Dois, de Stanley Donen, com Albert Finney e Audrey Hepburn, o casal problemático (e qual não é?) cujo percurso amoroso é reconstituído através das várias viagens de carro que fizeram, do namoro ao tédio matrimonial. E isso numa cópia linda, estalando de nova, para este filme de 1967. Donen faz uma comédia romântica estupenda, agridoce, e toma liberdades na forma, trabalhando com uma alternância de tempos narrativos espetacular. Meu amigo Marcus Mello, que também estava na sessão, postou no seu perfil do Facebook o seguinte comentário: "o melhor filme sobre casamento já realizado". Só posso concordar.

Só por momentos de prazer como este, a Mostra já teria valido. Mas ela foi muito mais do que isso. Que venha a 40ª.

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Abaixo, a premiação completa:

 

Prêmio do Júri - Melhor Filme - Novos DiretoresPARDAIS, de Rúnar Rúnarsson - Islândia, Dinamarca, Croácia

Menção Honrosa do JúriCARTA BRANCA,de Jacek Lusinski - Polônia

Prêmio do Público - Melhor Ficção InternacionalSABOR DA VIDA, de Naomi Kawase - Japão, França, Alemanha

Prêmio do Público - Melhor Documentário InternacionalPIXADORES, de Amir Escandari - Finlândia, Dinamarca, Suécia

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Prêmio do Público - Melhor Ficção BrasileiroTUDO QUE APRENDEMOS JUNTOS, de Sérgio Machado - Brasil

Prêmio do Público - Melhor Documentário BrasileiroMONSTROS DO RINGUE, de Marc Dourdin - Brasil

Prêmio da Crítica - Melhor FilmeOS CAMPOS VOLTARÃO, de Ermanno Olmi - Itália

Prêmio da ABRACCINE - Melhor Filme BrasileiroASPIRANTES, de Ives Rosenfeld - Brasil

Prêmio Associação Autores de Cinema - Melhor RoteiroPARDAIS, de Rúnar Rúnarsson - Islândia, Dinamarca, Croácia

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Prêmio da Juventude - Melhor Filme InternacionalBEATLES, de Peter Flinth - Noruega

Prêmio da Juventude - Melhor Filme BrasileiroCALIFÓRNIA, de Marina Person - Brasil

Prêmio Leon CakoffJOSÉ MOJICA MARINS

Prêmio HumanidadePATRICIO GUZMANERMANNO OLMI

Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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