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Opinião|'Pais e Filhos', por uma ética do afeto

Pais e Filhos, de Hirazaku Kore-eda, trata das questões emocionais envolvidas num caso de troca de bebês na maternidade. Os dois meninos têm 6 anos e, constatado o equívoco, psicólogos e médicos aconselham as duas famílias a "destrocar" as crianças quanto antes. Pode-se imaginar a quantidade de sofrimento envolvida numa situação como essa, tanto para as crianças como para os adultos. Dessa matéria emocional é feito o novo filme de Kore-eda.

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Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

Mas, ao contrário do que pode se pensar a princípio, Pais e Filhos não é apenas um filme de relações afetivas. Por meio do caso, Kore-eda interpreta o âmago da sociedade japonesa contemporânea e registra como ela se comporta no tocante à questão da diferença.

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O ambicioso arquiteto Ryota (Masaharu Fukuyama), o pai "laborioso", não está plenamente satisfeito com seu filho, apesar de Keita (Keita Nonomya) ser uma criança encantadora. Ryota o acha pouco competitivo. Quando sabe que ele não é seu filho biológico, o arquiteto, sem querer talvez, pronuncia uma frase terrível: "Agora está tudo explicado".

A ele se opõe Yudai (Lily Franky), o pai "lúdico", podemos chamá-lo assim. Ele brinca com as crianças, toma banho com elas, é dono de uma modesta lojinha e parece pessoa pouco ambiciosa. Costuma dizer uma frase que soa como blasfêmia numa sociedade dominada pela ética do trabalho, como a japonesa: "Nunca faça hoje o que pode deixar para amanhã".

Sem revelar muito da trama, podemos dizer que há um deslocamento ético ao longo da história. A uma ética do trabalho, contrapõe-se uma ética do afeto. Nem sempre as duas podem coexistir, o que tem implicações sociais muito graves.

Existe no filme também um sentido histórico. Quando o patrão do pai "laborioso" o aconselha a se dedicar mais à família e diminuir o ritmo de trabalho, Ryota lhe diz, surpreso: "Mas para chegar onde chegou, o senhor sempre pisou no acelerador". O patrão responde: "Eram outros tempos". Dá a entender que a época da ética ligada à dedicação exclusiva ao trabalho havia passado e deixado rastro considerável de devastação afetiva. Conclusão: melhor viver que acumular.

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Apesar da distribuição bastante equilibrada dos papéis (entre as crianças e os dois casais), é evidente que Ryota é o personagem mais em evidência. Porque, justamente, é o mais problemático. Bastante autocentrado, precisará recuperar um tipo de sensibilidade mais sociável se não quiser ser devorado pela situação que enfrenta. Fazendo pose de forte, ele, no fundo, é o polo mais fraco em toda a questão. As crianças podem sofrer, porém são adaptáveis. As mulheres, com seu senso de solidariedade mais desenvolvido, conseguem apoiar-se mutuamente nos momentos difíceis. Yudai, o "pai lúdico", dispõe de uma sabedoria de vida que o torna mais maleável em situações complexas. E Ryota? Bem, ele possui o seu trabalho, suas certezas, sua rigidez, e um processo afetivo não resolvido em sua infância. O mais forte é o mais desamparado.

Pais e Filhos completa um ciclo de reflexão sobre a sociedade japonesa iniciado com o clássico Era Uma Vez em Tóquio (1953), de Yasujiro Ozu. Neste, os pais idosos saem do interior para visitar os filhos na cidade, mas estes não têm tempo para os velhos, envolvidos que estão com seus problemas e afazeres próprios da correria da vida moderna. O Japão do pós-guerra muda suas estruturas sociais em face da ocidentalização e se desumaniza para se desenvolver em ritmo acelerado.

Em Pais e Filhos, 60 anos depois, o Japão da crise faz o balanço dessas décadas de desenvolvimento acelerado. Mostra o preço que foi pago e se pergunta pelo caminho a seguir. A lógica econômica não segue a (i)lógica humana. Costumam contradizer-se. Pais e Filhos anuncia o parto possível desse novo homem, que não seja escravo das engrenagens econômicas. Essa transformação individual pelo sofrimento é o que sobrou de contestação diante da falência das utopias políticas.

Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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