Foto do(a) blog

Cinema, cultura & afins

Opinião|Páginas do Futuro: ficção científica à brasileira

 

PUBLICIDADE

Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

Uma coletânea de contos de ficção científica, mas sem Isaac Asimov, H.G. Wells ou Ray Bradbury. Nela, em vez desses nomes óbvios do gênero, você vai encontrar autores brasileiros, alguns bem conhecidos, outros nem tanto. É assim o livro Páginas do Futuro, organizado pelo escritor Bráulio Tavares, que reúne nomes como Ademir Assunção, Jerônymo Monteiro e Fábio Fernandes e outros que dificilmente se poderia imaginar como cultores do gênero sci-fi entre nós: Raquel de Queiroz, Joaquim Manuel de Macedo e Rubem Fonseca.

PUBLICIDADE

De fato, como imaginar que a autora de um clássico do romance regionalista como O Quinze poderia escrever um conto de ficção científica como Ma-Hôre, tão intenso e enxuto que bem poderia ser filmado por um grande estúdio norte-americano? "É a única incursão conhecida dela no gênero", diz Bráulio, ele próprio um cultor da ficção científica (é autor de Mundo Fantasmo, entre vários outros livros). Quem diria que Joaquim Manuel de Macedo, autor de um daqueles romances mais lidos de forma compulsória pelos estudantes brasileiros, A Moreninha, investiria imaginação numa descrição apocalíptica como em O Fim do Mundo? Ou que um príncipe da narrativa policial como Rubem Fonseca fizesse também sua única incursão no gênero sci-fi com um thriller futurista sobre um Rio de Janeiro, que se parece à Los Angeles de Blade Runner, de tão distópico, violento e caótico?

O fato é que, surpresas à parte, com Ma-Hôre, Raquel de Queiroz assina um dos melhores contos do volume. O título seria o nome de um homúnculo de aparência benigna, embarcado involuntariamente em uma nave pilotada por humanos e que o leva à Terra, para longe do seu planeta natal. Raquel trabalha com habilidade o tema do "estranho entre nós" e prepara um desfecho surpreendente para o leitor. Ao ler esse conto, impossível não pensar que a autora deveria ter se dedicado um pouco mais ao gênero.

O Fim do Mundo, originalmente publicado no Jornal do Commercio do Rio de Janeiro, em 1857, é o mais antigo texto da antologia. Aparece mais como uma curiosidade, glosa reiterada sobre os supostos efeitos libertários de um eventual cataclisma planetário. O tema, de tão presente no inconsciente coletivo, reaparece até mesmo na música popular, no conhecidíssimo "Anunciaram que o mundo ia se acabar", de Assis Valente, celebrizado na voz de Carmem Miranda .

Já O Quarto Selo, texto originalmente publicado em Lucia McCartney, em 1967, mostra a narrativa típica de Fonseca, com seu estilo e personagens implacáveis, apenas deslocados para um futuro um tanto indefinido. Como escreve Braulio Tavares, Rubem Fonseca, embora admirador confesso da ficção científica, pouco se aproximou do gênero, sendo este conto uma notável exceção em sua obra.

Publicidade

É, no entanto, com os autores menos conhecidos que o livro reserva as melhores e maiores surpresas, em especial para o leitor pouco familiarizado com o que se faz na FC brasileira. Por exemplo, Exercícios de Silêncio, de Finisia Fideli. O organizador nos informa que Finisia é médica homeopata e faz parte do grupo de autores cujo surgimento é ligado ao Clube de Leitores de Ficção Científica. A abordagem do conto é muito original e lembra, em seu clima, algumas passagens de uma obra famosa nos anos 1960, O Despertar dos Mágicos, de Louis Powells e Jacques Bergier. No relato, o protagonista Theo (a escolha do nome não se dá por acaso) tem a nave avariada e desce num planeta onde vive uma população que se desenvolveu de maneira diferente da humana. É uma civilização low-tech, na qual a apropriação tecnológica da natureza é substituída pela consciência de si e da sua posição no cosmos. Ao invés de método científico, meditação transcendental. Por paradoxo, é através da meditação e do silêncio interior que Theo poderá resolver o grave problema técnico que o impede de voltar à Terra.

Inútil dizer que essas histórias - a de Finisia e outras - contêm um comentário crítico da relação do homem com a técnica, quando esta parece dominá-lo e não o contrário. É um traço interessante e ambivalente o da sci-fi, ao apoiar-se num virtual avanço tecnológico para, não raro, denunciar-lhe as implicações e os perigos para a vida humana. Caso, por exemplo, de Eu, Robô, de Isaac Asimov, um clássico sobre a revolta das máquinas.

De qualquer forma, nota-se na seleção proposta a preocupação com uma FC que seja, não digo "autenticamente" brasileira (já que esse estado de pureza não existe), mas que se expresse em sotaque nacional, respire nossos temas, e corte, de certa forma, o cordão umbilical com o o qual se liga ao mainstream do gênero, a matriz anglo-saxônica.

No estudo introdutório que escreve para Páginas do Futuro, Braulio remonta a três tradições presentes na formação da FC contemporânea: a dos antigos, com seus relatos fantásticos, tais como a Odisseia de Homero e as Metamorfoses de Ovídio. O Scientific Roman europeu, cunhado no seio da Revolução Industrial, e que tem Jules Verne e H. G. Wells entre seus nomes mais representativos. Por fim, os pulp magazines norte-americanos que, nos anos 1920 e 1930, estabelecem as bases da FC moderna. É com essas tradições que os autores brasileiros têm de dialogar. Porém, sem se submeter a elas. Como escreve Braulio, "A FC brasileira não pode abrir mão de um conhecimento da FC internacional sob o risco de deixar de ser FC, e não pode abrir mão de um conhecimento equivalente da literatura do nosso país, sob o risco de deixar de ser brasileira".

A diversidade apresentada no volume e sua antiguidade nas letras brasileiras, ainda que de forma episódica, deixam antever boas páginas no futuro da FC à brasileira. Desde que a deglutição das tradições estabelecidas se dê de maneira criativa e original. Não por acaso, um autor como Ivan Carlos Regina publicou, em 1988, seu Manifesto Antropofágico da Ficção Científica Brasileira. Inspirado nos nos modernistas de 1922, Ivan entende ser necessária a deglutição radical dos nutrientes estrangeiros para a produção da proteína nacional. Num trecho do manifesto, escreve: "Precisamos deglutir urgentemente, após o Bispo Sardinha, a pistola de raios laser, o cientista maluco, o alienígena bonzinho, o herói invencível, a dobra espacial, o alienígena mauzinho, a mocinha com pernas perfeitas e cérebro de noz, o disco voador, que estão tão distantes da realidade brasileira quanto a mais longínqua das estrelas."

Publicidade

Páginas do Futuro dá uma amostra bem variada de como esse processo de deglutição e digestão tem se dado entre nós.

CONTiNUA APÓS PUBLICIDADE

Sobre o coordenador do livro

Braulio Tavares (1950) nasceu em Campina Grande, na Paraíba, e mora no Rio de Janeiro. É escritor, poeta, compositor (tem cerca de 20 músicas em parceria com Lenine, por exemplo), cronista e organizador de antologias. Entre elas, Páginas de Sombra (Contos Fantásticos Brasileiros), Contos Fantásticos no Labirinto de Borges, Freud e O Estranho (Contos Fantásticos do Inconsciente) e Contos Obscuros de Edgard Allan Poe. É autor dos livros A Espinha Dorsal da Memória (1989), A Máquina Voadora (1994), Mundo Fantasmo (1996) e ABC de Ariano Suassuna (2007), entre outros. Escreve crônicas diárias para o Jornal da Paraíba, transcritas em seu blog Mundo Fantasmo (mundofantasmo.blogspot.com). Como concilia tantas atividades? "No fundo sou apenas um escritor", disse, em conversa com o Estado. "É o exercício da palavra escrita que dá o fio condutor em tudo o que faço". L.Z.O.

Trechos

 

Publicidade

"A sorte, pensavam os astronautas, é que o seu pequeno cativo tinha o coração ligeiro ou filosófico. Porque depressa aceitou o irreparável e tratou de adaptar-se. Auxiliado pelos desenhos, com rapidez adquiriu um bom vocabulário na língua dos humanos. Tinha a inteligência ávida de um adolescente bem dotado...Também contava coisas da sua gente que, na água, elemento dominante em nove décimos do pequeno planeta, passavam grande parte da sua vida" (Ma-Hôre, Raquel de Queiroz)

 

"Passaram toda a noite imersos no mundo luminoso do copo de cristal, ela vendo massas humanas a caminhar por um terreno sem fim, entremeadas de pesados carros de guerra. Via o brilho de armas, das pontas das lanças; o reflexo da luz nas lâminas de espadas desembainhadas. Via rolos de pó erguerem-se por cima dos soldados." (O Copo de Cristal, Jerônymo Monteiro)

 

Serviço: Páginas do Futuro - Contos Brasileiros de Ficção Científica (seleção e apresentação de Braulio Tavares. Ilustrações de Romero Cavalcanti). Editora Casa da Palavra, 160 páginas.

Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.