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Cinema, cultura & afins

Opinião|Pachamama - entrevista com Eryk Rocha

Pachamama é uma divindade, a "Mãe Terra" no idioma dos incas. É também o título do novo filme de Eryk Rocha, fruto de uma viagem pela Amazônia brasileira, Bolívia e Peru. Um mergulho poético na realidade do continente, vista pelos olhos de um viajante amoroso, atento e inspirado. O sobrenome Rocha lhe diz alguma coisa? Pois bem, Eryk é filho de Glauber com a também cineasta colombiana Paula Gaitán. Sobre o pai famoso, ele já havia feito um documentário intitulado Rocha Que Voa. Na entrevista a seguir, você vai descobrir que Eryk também voa, mas mantém os pés no chão.

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Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

Fale um pouco do projeto de Pachamama. Como você teve a ideia de fazer essa incursão pelo continente?

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Tenho uma raiz latino-americana muito forte. Tenho sangue colombiano. Estudei cinema em Cuba, morei na Venezuela, e viajei bastante pelo continente. O desejo de fazer um filme de estrada pela América Latina coincidiu com o convite de um amigo, o João Carlos Nogueira, cientista político. Os outros viajantes que participaram da travessia não eram uma equipe de cinema. Havia historiadores, cientistas políticos, e também os engenheiros mecânicos que cuidavam da logística. Essa intensa troca de experiências com pessoas de outras áreas foi importante para descobrir e enriquecer o filme. Paradoxalmente, Pachamama também é um filme sobre a solidão, já que não tive uma interlocução cinematográfica no processo de criação.

Parece alguma coisa meio iniciática, assim de conhecer as raízes para se posicionar diante do mundo. Lembra a viagem de Che, por exemplo, filmada pelo Walter Salles. O que a viagem lhe ensinou?

Toda pergunta já é uma afirmação. De onde viemos? O que é ser sul-americano? O deslocamento permitiu me ver melhor como indivíduo, como cineasta, mas também aprendi a ver o Brasil de outra forma. Redescobrir o Brasil através de outros povos.

Parece que você optou por uma linguagem poética e não linear.

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Para mim, o cinema é acreditar naquilo que não foi revelado. Faço cinema para descobrir quem sou eu. Para descobrir o que penso, e o que sinto. O mais importante é a relação com o mundo, com a vida, é daí que nasce a linguagem. Atrai-me no cinema-documentário a possibilidade de misturar várias linguagens dentro de um só filme, camadas entrelaçadas, rompendo certa visão homogênea, puritana, que aprisiona o cinema-documentário ao realismo, ao jornalismo, lançando certa ideia do real que é falsa, porque creio que o real não está ligado ao realismo e sim a uma crença, a uma fé, a formas de sentir e aprender com o mundo, são formas imaginárias de acreditar no mundo.

Além disso, o filme tem um aspecto inacabado, de coisa se fazendo, de processo.

É verdade. É um filme-processo, de apontamentos, o filme é o próprio processo em busca do filme. É um filme de descobertas através do olhar de um viajante. Filmei 80 horas de material e nunca tive certeza que iria sair um filme. Não houve pesquisa prévia de personagens, e eu não conhecia nenhum daqueles lugares por onde passei. O filme nasce do acaso, dos encontros com as pessoas, com as paisagens. O homem e a câmera. O homem e a terra. O homem em movimento. Em movimento pelo continente sangrando, em ebulição, em erupção vulcânica. Pachamama é um filme do interior, de dentro da terra, de entre as pedras, de entre as terras, de dentro das plantas, que vai ao interior das veias do corpo e das veias abertas da América Latina.

O tom político do documentário parece muito claro.

Hoje a América do Sul está no "olho do furacão". Vive um momento particular de um fazer a política desde a terra, desde uma experiência ancestral. Não é uma experiência política tradicional de esquerda, comunista ou socialista, mas uma experiência que vem de uma reflexão cultural, de diferentes movimentos sociais nativos, dos povos originários da cultura inca. Em Pachamama isto me marcou muito: entender como a terra está fertilizando a política. A ancestralidade despertando um novo olhar. Isso é um fenômeno novo, original. Isso também pode ser um estímulo para pensar o Brasil, acho muito importante que busquemos nossas matrizes, um certo Brasil profundo esquecido, assim podemos abrir as veredas da reinvenção.

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Eryk, você coloca esse filme em continuidade com Rocha Que Voa, ou considera duas obras sem relação entre si?

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Rocha Que Voa é um movimento de encontro da imagem do pai e de alguma forma da imagem do cinema. E - por que não? - de uma imagem do continente latino-americano. Meu segundo filme, Intervalo Clandestino, é o meu desejo de participar da história política do Brasil, no momento da consolidação da redemocratização, com a chegada ao poder de Lula. Quer discutir a política a partir do olhar do cidadão e não da política institucional, abrindo assim uma outra perspectiva, trazendo o imaginário político para a boca do povo, a política do corpo, da cidade, do gesto, cinema de rua. Pachamama consolida o que eu chamo de trilogia da política, do imaginário e da terra, e o que une os três filmes é a multidão. Talvez o que une Pachamama e Rocha Que Voa é a tentativa de desfronteirizar o real e o imaginário, o sonho e a realidade, tudo está amalgamado dentro de nós, não há limite entre essas forças, essa divisão é filha do racionalismo europeu, vem de uma ideia monoteísta. Vem de uma ideia dualista que separa o corpo e a mente. Para os indígenas, a fantasia é a mais viva realidade. Rocha Que Voa reflete essas questões através da montagem, e acho que Pachamama através da minha relação com a câmera, que está integrada ao meu corpo, minha respiração, na pulsão dos meus órgãos, a câmera é um prolongamento do corpo.

Nesse sentido, não posso deixar de perguntar como você se relaciona com a obra do seu pai. Você vê a obra do Glauber como um todo, ou tem seus filmes preferidos?

A obra do meu pai é uma grande inspiração para mim e para muitas gerações do Brasil e do mundo. Glauber é um estímulo de coragem e invenção, é uma provocação constante. Ele abriu caminhos essenciais para o cinema, e para um pensamento latino-americano original e libertário. Gosto especialmente do Idade da Terra, que considero a síntese da obra dele. Um filme ainda a ser descoberto. Do meu pai sinto uma influência na questão política, de pensar o Brasil, e o imaginário dos povos latino-americanos. Da minha mãe que foi a pessoa que me formou esteticamente e que me ensinou a prática do cinema, sinto uma influência na questão de pensar a imagem, as texturas, as cores, a plástica da imagem, as artes plástica e a poesia. A possibilidade da abstração como potência do real e do afeto.

Para finalizar, fiquei sabendo que você está terminando seu primeiro filme de ficção. Do que se trata?

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O filme se chama Transeunte e está em fase de montagem. É a história, a vida de um homem solitário que se aposenta e precisa se reinventar, encontrar novos sentidos para sua existência. Ele passa parte do tempo andando pelas ruas do centro do Rio de Janeiro onde vê e ouve situações cotidianas de outros transeuntes. O filme é em preto e branco, o protagonista é o Fernando Bezerra, e a VídeoFilmes (Walter Salles e Mauricio Ramos) está produzindo.

Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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