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Opinião|Oscar 2013: a América e seu espelho

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Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Atualização:
Ben Affleck em Argo: a glória da CIA Foto: Estadão

Costumamos chamar de história a política do passado e de política a história do presente. No entanto, tudo é história e política.

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E, nesse sentido, o Oscar 2013 apresenta um predomínio bastante claro de obras que confrontam os EUA com sua história política, passada ou presente. Dois deles - Lincoln e Django Livre - vão ao século 19, à escravidão e à Guerra Civil, que matou 600 mil americanos, mais do que em todas as guerras que se envolveram depois, incluída a 2ª Guerra Mundial.

Dois outros filmes - Argo e A Noite mais Escura - falam da política contemporânea, a primeira tendo por tema o sequestro de cidadãos americanos na embaixada em Teerã, em 1979. O segundo, a caça a Osama Bin Laden, líder da organização Al Qaeda e tido como responsável pelo atentado de 11 de setembro de 2001.

Ou seja, dois dos filmes são sobre a política interna americana; os outros dois sobre sua política externa, distinção que tem sua importância.

Em Django Livre temos uma bela fantasia histórica de Tarantino. Fiel ao seu estilo, Quentin usa a história como um material plástico, que pode deformar (no bom sentido do termo) à vontade para dele tirar uma trama interessante. As homenagens aqui vão ao western spaghetti, sobretudo os de Sergio Corbucci e outras referências, entre as quais o mito nórdico de Sigfried e Brunhilde. Nem por ser lúdico, o filme deixa de ir ao fundo da questão, a abjeção que é transformar um ser humano em objeto. Tanto assim que, nos Estados Unidos, era um escândalo ver um negro montado em um cavalo, como se o dorso deste nobre animal fosse privativo de arianos.

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A política tarantiniana é mais sensorial, enquanto, pasmem, a de Spielberg, é mais reflexiva.

Lincoln, com 12 indicações, fala da luta do 16º presidente americano para aprovar a emenda à constituição que tornava ilegal a escravidão. Essa 13ª emenda foi obtida graças sacrifícios, jogo de cintura, retórica e cálculo político, e mesmo com uso de técnicas pouco ortodoxas como suborno e empreguismo.

Quem esperava de Spielberg uma cinebiografia melosa e hagiográfica teve motivos para se surpreender. Lincoln, na magnífica interpretação de Daniel Day-Lewis, é visto em sua inteireza humana, cheia de caprichos e fragilidades, mas também em sua imensa obstinação. Lincoln parece ter consciência perfeita da importância da aprovação da emenda e não se detém diante de nenhum obstáculo, e nem de escrúpulos morais, para obtê-la. Os fins justificam os meios, parece dizer, pensando como Maquiavel, mas sem citá-lo.

Entre os expedientes, um deles parece notável. Lincoln adia artificialmente o fim da Guerra Civil para que os estados confederados não tenham tempo de voltar à União e embargar a emenda que estava sendo votada. Se fôssemos julgá-lo apenas sob o ponto de vista moral, sua obra de engenharia política ficaria em segundo plano. É surpreendente que tudo isto esteja no belo filme de Spielberg, que talvez não por acaso, com 12 indicações ao Oscar, foi perdendo fôlego nas apostas à medida que a premiação se aproxima. Talvez seja realista em excesso para os padrões em uso em Hollywood.

Argo, que vem agora encabeçando a lista de favoritos a melhor filme, parece ter esses ingredientes de cinemão que faltam a Lincoln. O filme trata da política externa americana contemporânea, o resgate de seis pessoas refugiadas na embaixada do Canadá, em Teerã. Quando a embaixada americana foi invadida e todos os seus funcionários se tornaram reféns, seis deles conseguiram escapar para a embaixada do Canadá e de lá foram tirados por uma ação mirabolante comandada pela CIA.

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Aqui, a ação política é esculpida em termos de um cinema de ação inteligente, dirigido e interpretado por Ben Affleck. Ele mesmo é Tony Mendez, agente especializado em "exfiltração", ou seja, em tirar gente de lugares difíceis. Bola uma falsa filmagem em território iraniano e faz os seis se passarem por integrantes da equipe de cinema. Apesar de abusar de alguns clichês do cinema suspense, Argo é bem interpretado, tem ritmo, é bem montado. Aliás, muito bem montado, com todas as ações paralelas envolvendo uma ação desse porte sendo mostradas ao espectador.

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O outro exemplar de política externa é A Noite mais Escura, de Kathryn Bigelow, filme envolvente, mas que tem sido atacado mesmo nos Estados Unidos. A polêmica está em mostrar cenas de tortura que teriam contribuído para encontrar o paradeiro de Bin Laden, tido como inimigo público número 1 desde o ataque às Torres Gêmeas.

A personagem principal é Maya (Jessica Chastain), agente jovem que, apesar da aparência frágil, é durona como a diretora e leva a peito a caça a Bin Laden. Como filme de ação e tensão, A Noite mais Escura é bastante competente. Mas deixa algumas dúvidas sobre suas implicações éticas. Bigelow teria defendido a tortura como forma de obtenção de informações? Ela mesma se defendeu da acusação num artigo do Los Angeles Times. Diz, o que é verdade, que a representação de algo na tela não implica concordância do diretor. Certo, mas a maneira como o faz, talvez sim. Sua própria personagem, Maya, a princípio fica incomodada, mas, logo depois, ameaça um prisioneiro com o tratamento dispensado a eles na base americana. O ensaísta esloveno Slavoj Zizek (que vem ao Brasil para a série de conferências Fronteiras do Pensamento) viu o filme e entende que Bigelow "está aliada a uma normalização da tortura". Lembra que, na linguagem dos agentes, tortura vira "método intensivo de interrogatório", como se a linguagem politicamente correta limpasse o horror do ato. O filme contribuiria para rebaixar nossos padrões éticos, o que me parece uma observação justa.

De toda forma, tanto Argo como A Noite mais Escura, tão diferentes entre si, guardam um ponto em comum - a glorificação da CIA. Tão ironizada por ações atrapalhadas, ou execrada por liberais por intervenções em outros países (vários dos quais latino-americanos), na época da guerra ao terrorismo, a Central de Inteligência retoma seus direitos e ganha a homenagem de Hollywood. No momento em que a luta pela dominação se estende à fronteira islâmica, parece haver um subentendido de que guerra é guerra e que, portanto, todos os meios são válidos. Não há limites para a ação da CIA mesmo porque não existe algo como uma polícia supranacional para fazer cumprir o direito internacional. Basta lembrar que os EUA (e aliados) invadiram o Iraque, à revelia da ONU, a pretexto de buscar armas de extermínio de massa, nunca encontradas. O vale-tudo internacional está inscrito no DNA destes dois filmes.

Por isso, por paradoxo, os mais maduros e éticos de todos eles são os de Tarantino e Spielberg. Um, por denunciar uma ignomínia e revelar, sem pieguices, o gosto da revanche que se esconde no oprimido. O outro, por se tratar da história e da política interna, por revelar como mesmo uma grande causa humanitária precisa ser conduzida com a inteligência estratégica de quem persegue o bem comum acima de percalços e possíveis transgressões à letra da lei. Pois nem sempre o que é legal é justo.

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Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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