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Cinema, cultura & afins

Opinião|Onde estão a Liberdade, a Igualdade e a Fraternidade?

Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

Dirigida por Krzsztof Kieslowski, a Trilogia das Cores - azul, branco, vermelho - inspirada nas cores da bandeira francesa, e também nas divisas da Revolução de 1789, Liberdade, Igualdade, Fraternidade, sai agora em blu-ray. A caixa alia qualidade da imagem a uma quantidade de extras, entre os quais se destacam as "lições de cinema" do diretor, explicando trechos de suas obras. Esclarecedoras, ainda que breves.

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A Trilogia foi o canto do cisne de Kieslowski. Logo após terminá-la, declarou que abandonaria o cinema, pois não tinha nada mais a dizer. Morreu pouco depois, em 1996. Seu legado é extraordinário, como já se sabia desde Decálogo, série de episódios para a TV polonesa comentando os preceitos bíblicos à luz da atualidade. Desses 10 médias-metragens, dois tornaram-se longas - Não Amarás e Não Matarás.

Com a série francesa, Kieslowski poderá desenvolver ao limite suas ideias sobre o mundo e o sobre próprio cinema. O tema geral, digamos assim, seria rever as divisas da Revolução Francesa à luz da contemporaneidade. O que significa ser igual, livre, fraterno nos dias de hoje - entendendo-se por "hoje" a aurora dos anos 1990, quando implode o comunismo real, no qual Kieslowski vivera, e surge com força o neoliberalismo, o domínio do mercado sobre a vida?

No horizonte da Europa unificada, Kieslowski, e seu roteirista, Krzystof Piesiewicz, imaginam suas histórias permeadas por ideias e dúvidas fundamentais de qualquer ser pensante contemporâneo. Em A Liberdade É Azul (1993), a falha mecânica do carro dirigido por um compositor famoso leva ao acidente no qual morre toda a família, com exceção da mulher, Julie (Juliette Binoche). Em meio à dor, ela terá de aprender a viver outra vez. A Igualdade É Branca (1994) fala do divórcio entre um polonês (Zbigniew Zamachowski) e uma francesa (Julie Delpy) e da tentativa do homem de reatar a relação de qualquer jeito. A Fraternidade É Vermelha (1994) põe em cena personagens opostos - uma demodelo de bom coração (Irène Jacob) e um cético juiz aposentado (Jean-Louis Trintignant), cujo hobby é a escuta clandestina dos telefones da vizinhança.

O conjunto de filmes expõe ideias complexas através de suas narrativas. As histórias "pensam", como já dizia Horácio, o poeta antigo. Por que nos comovem? Porque falam de nós, nada menos. Desse modo, o raciocínio cinematográfico desenvolvido por Kieslowski nos conduz a certas indagações. Em A Liberdade É Azul: de que vale a "liberdade" conquistada por Julie através de uma tragédia? Ela pode ser exercida ou converte-se numa prisão? Em A Igualdade É Branca: pode-se falar em igualdade quando alguém não conhece o idioma e os códigos de um país? O ato de amor implica em transformar o objeto desse desejo em propriedade privada? Em A Fraternidade É Vermelha: sentimo-nos solidários com o próximo por amor a ele ou para apaziguarmos nossa própria consciência? Até onde vai o sentimento de amor desinteressado ao próximo?

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São questões tão fundamentais quando abstratas e de difícil resposta. Kieslowski nem finge ter soluções para os impasses que vai desenvolvendo ao longo dos filmes. Basta colocá-los em evidência e, assim fazendo, desestabilizar a rede de certezas que forma a boa consciência de cada um. Sem qualquer didatismo. Mesmo porque seus filmes nada têm de unívoco. Não são demonstrações de teses. Muito pelo contrário, preferem as antíteses, aqueles impasses morais de que somos formados. Da incerteza, da negatividade, dos acasos traumáticos ou felizes pode nascer alguma luz - é o que mostra a maravilhosa cena final de A Fraternidade É Vermelha, que, de certa maneira, funciona como resumo ou testamento de Kieslowski.

De resto, seus filmes são construídos com tanto cuidado, com grau tão denso de elaboração de cada cena que, a cada vez que são revistos permitem novo aprofundamento em nossa sensibilidade. Algo sempre nos scapa e fica para ser visto e sentido numa próxima vez. Numa de suas lições, lhe perguntam se o público é capaz de decifrar todos os detalhes e significações depositados em cada cena. O mestre responde que, inconscientemente, o público sente sim cada detalhe. Pode não ser capaz de falar sobre eles, mas incorpora esse mistério da fruição artística (sentir sem poder descrever) ao seu sentimento do mundo. Uma vez realizada sua utopia, Kieslowski não tinha mesmo mais do que falar, porque o silêncio também é belo.

Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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