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Opinião|Olhar de Cinema. Vidas à deriva em 'Navios de Terra'

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Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Atualização:
Navios de Terra Foto: Estadão

CURITIBA - Não se pode dizer que o primeiro concorrente nacional do Olhar de Cinema, Navios de Terra, não surpreenda. O longa, de Simone Cortezão, de Minas Gerais, é muito bonito do ponto de vista visual (cinema é imagem, ok). Procura - e consegue - produzir uma sensação de estranheza no espectador com sua indefinição entre ficção e documentário, além de uma narrativa para lá de inusual.

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Rômulo Braga (de Elon não Acredita na Morte) é marinheiro em um navio de carga que sai do Brasil rumo à China. Há longos planos introspectivos da vida entre céu e mar, numa embarcação gigante, atulhada de contâiners, e que parece, no fundo, um navio fantasma da ópera de Wagner, como se avançasse por conta própria mar adentro.

Veem-se poucos personagens. Quase nenhum. O tombadilho é um quase deserto. Em todo caso, seguem-se sequências interessantes de diálogos, como, por exemplo, quando outro marinheiro, possivelmente um profissional da área tornado personagem, relata aventuras marítimas como um ataque de piratas em plena África.

Não se trata de contar a história do filme, mesmo porque história, propriamente, não há, senão a experiência de uma ambiência e depois da errância do personagem principal em uma montanha chinesa. Chama-se hoje cinema de fluxo a este, digamos assim, gênero, que não deixa de ser interessante. Pelo menos ao espectador que se entregar mais às próprias sensações (e associações mentais) produzidas pela obra do à busca imediata de um sentido.

Na conversa com o público, a diretora citou Branchot, Deleuze, etc. Diz-se motivada pelos fluxos macroeconômicos mundiais e por espaços ocultos e interditos, como os porões dos grandes cargueiros. Intui-se que faz um cinema de investigação e diz que esta é a segunda parte de uma trilogia prevista. Enfim, parece um cinema em estado de latência, que aflora em imagens muito bonitas, mas se indefine em seus propósitos. Faz, no entanto, sentir e pensar, como se a a diretora estivesse mexendo em algo que nem ela mesma compreende muito bem, apesar das citações eruditas.

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O dia da competição foi hoje dedicado a obras vizinhas a esta. Ou, pelo menos, pertencentes a famílias cinematográficas afins. Em Soldado, de Manuel Abramovich, acompanhamos o processo de formação militar de um jovem recém incorporado ao Exército Argentino. A câmera o segue de perto, quase ignorando os personagens que se movem à sua volta. Na verdade, cola-se ao rosto do soldado em questão e poderia passar por uma crítica ao processo de uniformização militar e diluição de identidades na experiência de caserna. Como crítica, no entanto, parece um tanto amena, embora o projeto tenha méritos e não se afaste da sua proposta, ou melhor, do dispositivo escolhido para a abordagem. Sem voz off, sem comentários, apenas mostrando, sem análise ou parti-pris mais explícitos. Um cinema de observação, de senso agudo, porém.

El Mar La Mar (EUA), de Joshua Bonnetta e J.P. Sniadecki navega outras águas. As do Deserto de Sonora, mais especificamente próximo à fronteira entre México e Estados Unidos. Em relevo, aqui, a tragédia dos que tentam atravessá-la de maneira clandestina, rumo à "terra da promissão". Processo no qual são vítimas dos "coiotes" e no qual muitas vezes perdem a vida.

As imagens são belíssimas e, mescladas ao que se supõe serem depoimentos reais tanto de clandestinos como de policiais ou moradores dos arredores, traça um retrato duro e poético daquela realidade. É, também, imersão sensorial num agudo problema político e social, que apenas se agravou com a chegada de Donald Trump ao poder.

Murnau

Na imersão na obra do grande F.W. Murnau, o destaque fica para o até então desconhecido Caminhada Noite Adentro, melodrama de 1921 com a história do médico oftalmologista que, de casamento marcado, acaba por se apaixonar por uma dançarina de cabaré. A cópia, como as outras que estão sendo apresentadas na retrospectiva do Olhar de Cinema, parece saída do laboratório, estalando de nova. Nota-se, nessas obras, todo o talento inventivo deste grande mestre do cinema mudo, que culminaria depois em suas obras-primas como A Última Gargalhada, Nosferatu e Aurora. Refazer o percurso de um gênio, em cópias perfeitas, é raro privilégio de cinefilia.

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Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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