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Opinião|Olhar de Cinema 2022: Babi Yar, o horror da guerra

 

Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Atualização:
 Foto: Estadão

CURITIBA - Difícil descrever o impacto de Babi Yar. Context, filme de Sergei Loznitsa apresentado no Olhar de Cinema. Detém-se sobre um fato particular, o massacre de mais de 33 mil judeus na ravina Babi Yar, próxima a Kiev, durante a Segunda Guerra Mundial. Loznitsa usa material de arquivo e com ele constrói uma narrativa. Esta mostra a invasão do exército alemão, a ocupação e, posteriormente, a recuperação do território pelo Exército Vermelho, da União Soviética. 

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Para ser franco, já vi uma quantidade bastante grande de filmes e documentários sobre a Segunda Guerra e consumi uma boa bibliografia sobre o assunto. Mas não me lembro de ter ficado tão impactado. As imagens são nítidas e pungentes. Não estão lá para chocar. É que são chocantes mesmo. Durante o tempo de duração do filme somos mergulhados nesse processo de guerra para o qual não existe nenhuma outra palavra senão o horror. O horror conradiano diante do sofrimento que o ser humano é capaz de infligir aos seus semelhantes. 

São imagens das atrocidades nazistas, cenas de matança, corpos jogados na vala comum, mulheres tiradas de casa com seus filhos e amontoadas em caminhões. Depois a entrada em cena dos soviéticos, a prisão dos nazistas remanescentes, o julgamento, os enforcamentos em praça pública, diante de uma multidão incalculável e sedenta por vingança.

 Alguns depoimentos no julgamento são terríveis, como a da mulher que escapou da morte jogando-se sobre uma pilha de cadáveres,  fingindo-se de morta e quase sendo enterrada viva. Coisas assim. 

Ficamos espantados também da maneira festiva com que os nazistas são recebidos na Ucrânia, ao invadir o país. Afinal, eles matavam apenas judeus...Depois, a mesma celebração com que os soviéticos entram em cena, retomando a cidade e o país, então parte da União Soviética. Saem os retratos de Hitler e a suástica, entram os de Stálin e a foice e o martelo. 

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A História, com agá maiúsculo, é complexa demais, contraditória, cheia de matizes. E, claro, sujeita a narrativas e releituras segundo interesses políticos dos atores em cada momento. Isso não quer dizer que a verdade factual não exista e não possa ser recuperada para que saibamos quem somos, o que fomos e com quem estamos lidando. O filme é duro, polêmico e muito necessário.

 Foto: Estadão

A Censora. Outro filme interessante, e também situado na Ucrânia, é A Censora, de Peter Kerekes, da Eslováquia. Trata-se de uma ficção baseada em personagens reais sobre prisioneiras que cumprem pena em uma penitenciária de Odessa. Lesya (Marina Klimova) está grávida quando é presa por matar o marido. Dá à luz na prisão. Passa a conviver com outras mães presidiárias. 

A outra personagem é a censora, cujo trabalho é ler cartas e escutar as conversas entre visitas e presas feita pelo interfone. O que pode e o que não pode ser dito?

A Censora é um daqueles filmes baseados em pesquisa de campo sólida, portanto com vocação documental. Talvez por comodidade de produção, o cineasta preferiu o caminho da ficção. Reproduz a dureza da vida dessas mulheres - e dos filhos que crescem em ambiente carcerário até uma idade em que podem ser enviados para parentes ou, na falta destes, para adoção. 

A angústia dessa situação é passada para o espectador em um ambiente que seria redundante classificar como claustrofóbico. A humanidade das relações surge de onde não se espera e por parte de uma personagens inusitada. A dor, assim como a esperança, são tratados com delicadeza, tanto formal como de conteúdo. 

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 Foto: Estadão

Mandabi. No panorama histórico, um destaque para Mandabi, do senegalês Ousmane Sembène (1923-2007), considerado o pai do cinema africano. Mandabi, de 1968, mostra o cotidiano de Ibrahima Dieng, morador da periferia de Dakar, que um dia recebe do carteiro uma notícia surpreendente. Está à sua espera, no Correio, uma Ordem de Pagamento (Mandabi) em seu nome, enviada por seu sobrinho, que vive em Paris. 

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A partir daí, a vida de Ibrahima, até então pacata em companhia de suas duas mulheres e sete filhos, muda por completo. Para levantar o dinheiro, ele precisa de um documento de identidade, coisa que não tem. Para tirar o documento tem de apresentar uma certidão de nascimento, mas ele nem sabe direito o ano em que nasceu. Ao tirar as duas fotos do documento é engabelado por malandros que se passam por fotógrafos. A notícia do dinheiro se espalha e os vizinhos acorrem para lhe pedir algum emprestado. Sua irmã vem lhe cobrar uma dívida. E assim por diante. 

O personagem é um fiel seguidor de Alá, homem de boa vontade e generoso. Mas a trama segue uma direção francamente materialista - e cética. A boa vontade e a caridade são questionadas. E o que parecia uma boa notícia torna-se prenúncio da ruína do personagem. O dinheiro corrói, como sabia Balzac, fonte literária de inspiração para Marx. 

A filmagem de Sambène é calorosa e precisa. A crônica social emerge do retrato elaborado e dos tipos em perspectiva. Não apenas Ibrahima, mas suas mulheres, a vizinhança, os aproveitadores, etc. O filme passa verdade em seu registro, a começar pela utilização da língua Wolof nos diálogos. A cópia está restaurada e estalando de nova. Um programa imperdível para quem curte o cinema de geografias não-hegemônicas. 

 

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Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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