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Opinião|O Nadador: Enigma de uma Vida

O Nadador (The Swimmer), de Frank Perry, tornou-se um cult dos anos 1960. Com sua trama estranha (e também muito envolvente), fazia um certo tipo de público, hoje quase extinto, viajar em ressonâncias psicanalíticas, tratando da memória, da decadência, da busca por um passado inatingível.

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Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

O que pouca gente se dava conta é de que a trama de Perry fora buscada num dos contos mais interessantes do escritor norte-americano John Cheever (1912-1982). O relato consta da coletânea organizada por Mario Sérgio Conti e publicada pela Cia das Letras. Outra boa nova é que o filme também está de volta, em DVD, lançado pela Lume com o título de sua distribuição comercial no Brasil, Enigma de uma Vida.

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Enigma é um trabalho cinematográfico notável apesar de sua irregularidade, cheio de mistério e angústia. Ned Merril (Burt Lancaster) é o publicitário de meia idade que tem a ideia de voltar para casa nadando por todas as piscinas das casas da vizinhança. Trata-se, claro, de um bairro rico com casas nas quais era de rigueur haver uma piscina e, em torno delas, festas, recepções, bebidas e fofocas. Não se sabe bem porque Ned se viu alguns quilômetros longe de casa, vestido apenas com uma sunga de natação. Em todo caso, sem se questionar, vai atravessando a nado cada uma delas e conversando com seus vizinhos e conhecidos.

Qual um Ulisses, volta para a sua própria casa, que julga intacta e à sua espera. Mas, também com o personagem de Homero, não escapa ao poder transformador da viagem, ou ao desgaste da ação do tempo.

A Odisseia parece, de fato, uma fonte de inspiração (até mais para o filme do que para o conto) nítida, embora talvez não de todo consciente. No conto, é notável como Cheever mantém o registro realista - embora a situação seja mais ou menos extravagante - até que começa a introduzir pequenas dissonâncias, que são como pedras pelo caminho de Ned. Ora é piscina que se torna mais longa ou mais difícil de atravessar; ora é a borda, mais complicada de escalar (Ned não gosta de usar a escadinha, é um ponto de honra para o cinquentão atlético içar-se pela borda). Ou então é uma vizinha que, com ar de pena, fala dos problemas com a mulher ou com as filhas de Ned. Tudo parece novidade para ele. Algum engano, talvez, pois tudo anda bem em sua vida. Tanto assim que, esportivamente, resolveu voltar para casa nadando pelas piscinas de seus amigos...

No filme, Perry amplia essa estranheza buscada por Cheever sob a forma de um desconforto cada vez maior do nadador com um meio ambiente que se vai tornando hostil, até seu desfecho surpreendente. Cheever apenas introduz pela linguagem essas pequenas assimetrias, que vão se tornando mais perceptíveis à medida que o relato prossegue.

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Ao ler o conto dificilmente se tem a ideia de que seria possível tirar daí um longa-metragem. Claro que houve necessidade de ampliar o número de situações, mas, de qualquer forma, ateve-se ao eixo central da narrativa de John Cheever. Aliás, o roteiro é assinado por Eleonor Perry, na época mulher do diretor. As filmagens foram tumultuadas. Perry chegou a abandonar a parte final, que acabou dirigida por Sidney Pollack. É um filme a ser recuperado. Ele é menos alegórico que fantástico; e marca a presença intelectual da psicanálise num certo cinema que ainda se fazia nos Estados Unidos naquele tempo.

Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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