Sobre esse tema particular - o Holocausto - existem duas maneiras básicas de tratamento. A denúncia direta, do tipo A Lista de Schindler, de Spielberg ou do mais recente O Menino do Pijama Listrado. (Inútil compará-los com uma obra-prima como Noite e Neblina, de Alain Resnais.) Ou a menção em filigrana, como um pano de fundo que, tentacular, se insinua do passado para o presente e revela-se vivo, atuante e ameaçador, sob formas simbólicas mais elaboradas. Essa foi a estratégia de Nicolas Klotz em seu brilhante A Questão Humana, ao mostrar que o "discurso" nazista, na modalidade particular da burocracia do extermínio, se recicla na linguagem gerencial das grandes corporações contemporâneas.
Daldry não chega a tanto. Mas, se perde em sutileza em relação a Klotz, toca num ponto que talvez seja ainda mais delicado - o da colaboração voluntária do cidadão comum alemão com o regime de Hitler em seus piores aspectos. De certa forma, o filme repete as clássicas perguntas feitas aos alemães no final do conflito: "Onde você estava durante a guerra? O que fazia? O que sabia?"
A inteligência do filme é deixar tudo isso em estado de latência enquanto ambienta a história nos anos 50, portanto já alguns anos distante do final da guerra. Envolve o espectador num caso interessante de amor entre um garoto de 15 anos, Michael (David Kross) e Hanna, mulher mais madura (Kate Winslet, no papel que lhe deu o Globo de Ouro e pode lhe valer o Oscar de melhor atriz). Há um encanto assimétrico nessa relação, pois a balzaquiana inicia o menino no amor, inclusive físico, e, em troca, pede que ele leia para ela alguns livros clássicos. Michael é o "leitor" do título. E a narrativa passa pelos seus olhos, já em sua fase adulta (agora interpretado por Ralph Fiennes), chamado a reencontrar a antiga amante da adolescência, em outras e piores circunstâncias.
São duas vidas que seguem entrelaçadas, mesmo a distância. De um lado a iniciação sexual; por outro, o menino que cresce, estuda, entra para a Faculdade de Direito e acompanha o julgamento tardio de pessoas que teriam trabalhado nos campos de extermínio. Num aspecto, é a Alemanha purgando-se dos próprios pecados. Em outro, o menino, que nada tem a ver com tudo aquilo, pois não tinha idade para ter participado do que quer que fosse durante a guerra, vendo-se atingido pela infâmia, ainda que indiretamente. Como se a culpa fosse um patrimônio coletivo às avessas, uma espécie de pecado original que as novas gerações herdam das antecessoras.
O interessante é a maneira como Daldry costura temas tão diversos: o sexo entre idades diferentes, os ecos do nazismo, a leitura e o analfabetismo. Mais ainda: ao entrar no centro da história, no tema delicado do extermínio dos judeus, evita o que é o lugar-comum nesse tipo de história. Esses clichês se resumem em duas atitudes complementares. Por um lado, tratar seus agentes como monstros incompreensíveis, praticamente exteriores à condição humana; por outro, aceitar a desculpa de que apenas cumpriam ordens, como fizeram alguns carrascos nazistas sob julgamento. Eles não tinham culpa de nada porque as ordens sempre vinham de uma instância superior. Cabia a eles cumpri-las e ponto. Não. Daldry restabelece aqui a margem da responsabilidade moral e das opções pessoais, possíveis mesmo em situações-limite.
O Leitor é a soma de todas essas características, uma mistura, diga-se, nem sempre bem balanceada entre a dureza do tema e um certo tom ameno da realização. Ou seja, não é um filme perfeito, longe disso. Mas, tudo considerado, é muito acima da média e revela Kate Winslet como atriz capaz de nuances e intensidade - o que bem pode lhe valer a premiação da Academia. O Leitor também concorre nas categorias de melhor filme, direção, roteiro adaptado e fotografia. A história baseia-se no romance homônimo de Bernhard Schlink, lançado aqui pela Record.
(Caderno 2, 9/02/09)