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Cinema, cultura & afins

Opinião|O início de Leos Carax

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Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

A vida cultural não costuma ser linear; pelo contrário, é cheia de reviravoltas, contradições e releituras. Quando surgiu nos anos 1980, Leos Carax despertou a curiosidade dos cinéfilos com dois filmes tidos como muito originais, Boy Meets Girl (1984) e Sangue Ruim (1986). Foi saudado como renovação do cinema francês, meio em baixa após o fim da nouvelle vague.

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Depois Carax foi arquivado na prateleira dos pós-modernos, um título, àquela altura do campeonato, um tanto pejorativo. Formava no mesmo pelotão dos estilosos Luc Besson e Jean Pierre Jeunet. Em seguida, já no início dos anos 1990, lançou Os Amantes de Ponte-Neuf e conheceu sobrevida e até um sucesso passageiro. Por fim, em 2012, mostrou em Cannes aquele que é talvez seu trabalho mais radical e chocante, no bom sentido - Holy Motors, sempre com seu ator-fetiche Denis Lavant. Essa reafirmação como autor sem dúvida está na origem da decisão da distribuidora Pandora de, por fim, lançar em circuito comercial seus dois primeiros trabalhos. Merecem revisão, mesmo porque só foram apresentados no País em mostras e festivais.

Nos dois filmes o ator principal é Levant, sempre com o prenome de Alex (o alter ego é explícito quando se sabe que o prenome verdadeiro de Leos Carax é Alexandre). Em Boy Meets Girl ele é um poeta que perde a namorada para um amigo logo no começo da história. Além disso, deverá dentro de três dias se apresentar ao exército. Em sua fotografia em preto e branco inspirada, devida a Jean-Yves Escoffier, Boy Meets Girl é um filme sobre um poeta, articulado em linguagem poética. Quer dizer, não possui linha narrativa em linha reta, em prosa, mas busca se expressar por meio do fragmento. Algumas cenas ficaram famosas, como quando Alex furta e esconde sob o casaco vários LPs da cantora Barbara para ofertá-los à amada.

Em Sangue Ruim (Mauvais Sang), sem deixar de lado o timbre poético, Carax flerta com o registro alegórico. A história é vagamente futurista e fala do surgimento de um vírus que infecta quem pratica sexo sem amor, uma primeira alusão à aids. Alex (mais uma vez Levant) é procurado por uma gangue para roubar a vacina contra o vírus, inventada por uma grande corporação. Deixemos de lado a puerilidade do enredo para apreciar outra cena famosa: Alex correndo pelas ruas ao som de Modern Love, de David Bowie. Um detalhe nessa sequência, de fato belíssima, é a expressão corporal de Levant, um ator de recursos e, desde cedo, com perfeito domínio sobre o corpo. Usando essa capacidade, ele faz com que a corrida se transforme em dança e dialogue com a música que se ouve.

Lindo. Mas não deixa de ser estranho quando a linguagem poética de Carax desperta no espectador (neste, ao menos) uma certa sensação de artificialidade que leva ao enfado. Como se o efeito poético se perdesse em meio a uma quantidade de referências colocadas de modo tão explícito que se sobrecarregam e se anulam entre si. O diálogo com Godard é bastante óbvio, assim como com Jean Eustache (de La Mamain et la Putain), o primeiro, um ícone da nouvelle vague, o segundo, seu epígono mais famoso. Mas se a estética do policial e da ficção científica, desconstruída por Godard em Alphaville, tinha sabor de novidade, em Sangue Ruim parece apenas um tanto requentada. E as dúvidas de Jean-Pierre Léaud entre suas duas mulheres conflitantes, que soava tão adulta em La Mamain et la Putain, em Boy Meets Girl recebe uma releitura um tanto teenager, sentimental e vazia.

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Boy Meets Girl e Sangue Ruim são, como logo se percebeu, filmes da cinefilia absoluta, aqueles cuja poética diz mais respeito ao próprio cinema do que à vida em si, com sua carne e imperfeita consistência. Não é tanto a busca do artificial que tira um pouco de vitalidade dessas obras, mas sim a sua autorrefência sistemática, que as distancia do espectador.

Outros terão percepções diferentes, o que é perfeitamente válido e natural, mas esse sentimento de esgotamento em si parece mesmo uma tônica dominante de um certo cinema dos anos 1980, do qual Boy Meets Girl e Sangue Ruim são exemplos perfeitos e acabados. Daí a importância desse relançamento, que tem sabor de estreia dada a pouca divulgação desses filmes na época.

Ao vê-los, sente-se o impulso de novidade que habitava o autor, ao mesmo tempo em que reverenciava o cinema de invenção mais recente de seu país. É aspiração de liberdade, presa ainda a um emaranhado de citações. O verdadeiro pulo no escuro, a pirueta no balcão à beira do precipício, viria apenas muitos anos depois, quando um já cinquentão Leos Carax espantou o mundo com seu Holy Motors. Esses filmes que agora vemos são aquecimento para o salto mortal.

Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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