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Opinião|O Inferno de Clouzot

 

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Foto do author Luiz Zanin Oricchio
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 Foto: Estadão

Henri-Georges Clouzot (1907-1977) foi um cineasta francês pré-nouvelle vague, autor de alguns filmes muito bons como As Diabólicas e O Salário do Medo. Com a eclosão da nouvelle vague, Clouzot e colegas foram colocados fora de moda, tachados de desatualizados, caretas e "literários" pela turma de Rohmer, Chabrol e Godard. Coisa de jovem demarcando território. Com o passar do tempo, Clouzot readquiriu o lugar que era seu na história do cinema francês. Um diretor muito bom, pouco dado a inovações, mas competente narrador. Para comprovar, basta assistir a O Salário do Medo, um dos melhores thrillers de todos os tempos.

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Acontece que o mundo bem acabado de Henri-Georges Clouzot apresenta um buraco negro, e esse é o tema do belo documentário de Serge Bromberg e Ruxandra Medrea. O Inferno (L'Enfer) seria o título do seu filme inacabado, com Romy Schneider, no qual  trabalhou em 1964. Projeto faraônico, falava dos ciúmes delirantes de um gerente de hotel na Provence (Serge Reggiani) por sua esposa (Romy). O projeto, de alto orçamento, teve três semanas tumultuadas de filmagem até ser abandonado. As imagens do material filmado, inéditas até agora, são mostradas no documentário.

O filme de Bromberg e Medrea não se limita a mostrar as (belíssimas) cenas da filmagem incompleta. Conta a história dos bastidores desse fracasso e mostra que os dramas por trás das câmeras podem ser tão ou mais intensos que aqueles contados pelos próprios filmes. No caso, o projeto teria sido abortado não por circunstâncias fortuitas, mas por uma série de inibições e problemas do próprio Clouzot. Como se, ao tratar do ciúme, e ao fazê-lo com uma atriz do porte e beleza de Romy Schneider, Clouzot tivesse trabalhado com material combustível acima da sua capacidade de assimilação.

Clouzot parecia também movido por uma expectativa excessiva em relação à obra. Via em l'Enfer menos um filme do que sua redenção como artista. Dessa maneira, e dispondo de um capital ilimitado vindo dos Estados Unidos pela Columbia Pictures, pôs-se a buscar formas narrativas novas, exercitando-se num tipo de experimentação que não fazia parte de sua trajetória no cinema até então. O elenco sofria em suas mãos com o excesso de repetições de cenas e uma proposta estética que não chegava a compreender. Clouzot brigou com o protagonista e Reggiani abandonou o set de filmagem. A crise culminou com um ataque cardíaco do diretor, que ficou incapacitado para prosseguir o trabalho.

O Inferno de Henri-Georges Clouzot traz as cenas de arquivo e as articula com entrevistas de participantes da filmagem. É, também, um trabalho arqueológico, que busca as raízes dessa história de um fracasso e, como sempre acontece nesses casos, ficamos no terreno das hipóteses. Uma delas, a mais consistente, é que Clouzot não soube lidar com a grandiosidade do tema e, sobretudo, com a abundância de recursos. Como se opulência de alguma forma o oprimisse o que, afinal de contas, não é tão estranho assim, e nada raro entre artistas.

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Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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