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Opinião|O Homem que Ri, em versão light

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Atualização:

É sempre arriscado adaptar um clássico e Jean-Pierre Améris sabia o que o esperava quando resolveu levar às telas O Homem que Ri, de Victor Hugo. O romance, ainda por cima, já havia ganhado duas versões para a tela antes desta.

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Comparações e questões de fidelidade ao texto literário à parte, deve-se reconhecer que Améris busca o frescor contemporâneo ao contar pela terceira vez no cinema a história do garoto cujo rosto deformado faz com que pareça estar sempre sorrindo.

Ele é Gwynplaine e, junto com uma garota cega, Déa, são recolhidos por um artista e mercador  ambulante, Ursus (Gérard Depardieu). Eles se incorporam ao espetáculo mambembe e e Gwynplaine (vivido Marc-André Grondin, quando adulto) torna-se a principal atração. Vive da curiosidade despertada no povo por sua cicatriz, habilmente explorada pela arte da maquiagem.

Os temas principais de Hugo se sucedem obedientemente na narrativa. Em primeiro lugar, a questão da diferença, vista aqui como deformidade a ser explorada pela curiosidade popular e depois pela não menos mórbida adoração da aristocracia aos seres disformes. O contato do diferente com o povo pode ser incômodo, mas não chega a ser fatal. Já quando Gwynplaine se mete com as esferas mais altas da sociedade, arrisca-se a não sair intacto. Nessas interpretações da trajetória de Gwynplaine, pode-se encontrar em Améris tanto a devoção ao texto de Hugo quando o desejo de aplainá-lo para que se torne  nosso contemporâneo. Vale a pena. Afinal, apesar de vivermos na época do politicamente correto, ainda estamos longe da assimilação sem conflitos dos diferentes, por mais que se diga o contrário. Todos sabemos disso muito bem.

Améris busca um desenho visual contemporâneo para essa história escrita no século 19 e ambientada na Inglaterra do século 18. A atmosfera opressiva sugerida pelo texto de Hugo nesse extraordinário romance barroco é atenuada. As cores sugerem algo vagamente mágico como numa atmosfera de Tim Burton, mas, muitas vezes esse visual se aproxima do kitsch.

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Tudo, enfim, é levemente aparado e adocicado para que se torne mais palatável ao nosso olhar de cidadãos do século 21, supostamente exaustos pelo cotidiano e em busca de fantasia. Até mesmo o rosto disforme de Gwynplaine ganha dimensão mais light. Na descrição de Hugo, a face do personagem parece uma  deformidade assustadora. Tão cruel que não inspira o horror, mas o riso. Daí o sucesso de Gwynplaine no palco de Ursus. Na versão de Améris é o rosto de um belo rapaz, marcado por uma cicatriz parecida com a do Coringa, de Batman.

Enfim, não se trata de mau filme, mas é preciso identificar a direção em que caminha. Améris, diretor de comédias de sucesso, busca leveza numa história pesada como chumbo. Procura colocar-se em sintonia com um público que, por suposição, não deseja ver muito sofrimento na tela e, se o vê, prefere que seja ligeiro e remediável. O barroco universo de Hugo, sua defesa sem meias tintas dos pobres e oprimidos, precisa ser temperada para ter livre curso em nossos dias. Essa exigência dietética, na verdade autoimposta pelo diretor, não torna seu filme ruim. Apenas o deixa menor do que poderia ser.

Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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