Foto do(a) blog

Cinema, cultura & afins

Opinião|O enigma do Che de Soderbergh

Tenho observado a má recepção crítica à segunda parte do Che de Steven Soderbergh. Estranho (ma non troppo) porque me pareceu bom filme, nas duas vezes que o vi. Na primeira, assisti às duas partes juntas, o que me parece essencial para formar uma ideia sobre a obra. Depois, revi a segunda parte no Cine Ceará, que consagrou sua programação fora de concurso ao Che Guevara, este ano.

PUBLICIDADE

Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

Pois bem. Acho que, não fosse por uma questão comercial, as duas partes deveriam ter sido lançadas juntas. São mais de quatro horas de projeção, o que cria problemas nos horários das sessões, etc. Tudo bem, cinema é indústria e também comércio, etc. Agora, o que diria um escritor (sério, quero dizer) se um editor lhe dissesse que um livro de mais de 300 páginas não pode ser publicado? É isso. O projeto de Soderbergh, com consultoria de Jon Lee Anderson, biógrafo de Guevara, não poderia ser resumido nas tradicionais hora e meia ou duas horas do cinema comercial. Então foi dividido em duas partes. E estas lançadas com considerável intervalo entre si. Quando se vê a segunda parte, a memória da primeira já se apagou. Ou ficou difusa. Perde-se um pouco a relação entre elas. E, na relação, talvez esteja a chave da interpretação do Che de Soderbergh.

PUBLICIDADE

Mas o fato é que a primeira parte é mesmo mais fácil de ser digerida, pois representa a fase "eufórica", a vitória da revolução, a proposta do "homem novo", a aventura no Granma, na Sierra Maestra, a entrada triunfal em Havana, etc. É o filme da juventude, com seus encantos.

O segundo seria o filme da maturidade. Da derrota. Do "realismo", no mau sentido do termo, pois significaria a constatação de que a aventura cubana era, no limite, irrepetível, o que desmente a tese central do Che de que a revolução poderia se espalhar, formigar aqui e ali como cogumelos em pau úmido. Essa parada foi perdida mesmo. Mas, e aqui me pergunto: o Che da segunda fase não seria uma consequência lógica do Che da primeira, como se nela estivesse contido? O cavaleiro andante sacrificial da Bolívia já não estaria prefigurado no guerrilheiro vitorioso de Cuba?

Daí o tom às vezes para baixo, detalhista e até arrastado desta segunda parte. Que, a meu ver, para ser entendida, tem de refletir a luz lançada pela primeira. No aspecto mais evidente da coisa, dos "fatos", a extinção física do guerrilheiro na Bolívia representa a sua derrota final. Já na configuração do mito, é apenas o acabamento perfeito de uma aura a ser construída, e usada a cada vez que se falar doravante de revolta, insurreição e mesmo revolução.

A vida do Che não foi um fracasso. Ou uma moeda de dupla face, marcada primeiro pela vitória e, em seguida, pela derrota. Uma espelha a outra e, na dimensão histórica, se complementam. Soderbergh deve ter intuído tudo isso, e construiu seu filme (seu filme único e não uma obra constituída de duas partes) em consequência dessa "compreensão" talvez pouco consciente.

Publicidade

Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.