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Cinema, cultura & afins

Opinião|O cinema de Maurice Pialat

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Maurice Pialat (1925-2003), cuja obra será exibida na íntegra pelo CCBB a partir de hoje, é um daqueles cineastas mais comentados do que realmente vistos no Brasil. Dele, mesmo os cinéfilos mais atentos, em geral conhecem apenas Sob o Sol de Satã e, em especial, Van Gogh. Ambos foram lançados por aqui em meados dos anos 1980 e início dos 1990 e deixaram marcas na cultura cinematográfica, digamos, mais sofisticada.

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São trabalhos estupendos, é bom que se diga. Em especial Van Gogh, vivido pelo roqueiro Jacques Dutronc. O filme acompanha a fase final do pintor holandês em Auvers sur Oise, seu relacionamento com o irmão, Theo, e com seu médico, o Dr. Gachet, imortalizado no quadro famoso. A maneira como Pialat filma é das mais interessantes. Procura o âmbito mais descritivo, sem buscar explicações ou a psicologia do personagem. Mas é exatamente desse despojamento que nasce a emoção. Sua busca por um cantor para interpretar o artista também não é casual. Aparentemente, Pialat não queria um ator que "superinterpretasse" a figura de Van Gogh, um estereótipo do artista atormentado, que corta a própria orelha, etc. O Van Gogh de Dutronc é discreto, foge aos clichês. E, justamente por isso, nos toca mais fundo. A sequência em que seu corpo moribundo é cuidado por mulheres do campo é nada menos que comovente.

O mesmo pode ser dito sobre Sob O Sol de Satã, com o qual Pialat ganhou a Palma de Ouro em Cannes em 1987. Gérard Depardieu faz o padre Donisson, em dúvida com sua vocação. Donisson é acolhido na paróquia de uma pequena cidade do norte da França pelo abade Menou-Segrais, interpretado pelo próprio Pialat. Temos aqui os elementos básicos da religiosidade levada ao extremo, com dúvidas e mortificações e a presença perturbadora da jovem Mouchette (Sandrine Bonaire). Sob o Sol de Satã proporcionou a Depardieu um dos grandes papéis de sua extraordinária carreira no cinema. Seu padre Donisson, febril e atormentado pelas tentações de Satã e de uma ninfeta suicidária é inesquecível.

O fato é que Pialat, apesar de sua estreia tardia, constitui-se em nome notável do cinema de autor francês dos anos 1980 e 1990. Interessante é que, contemporâneo da nouvelle vague, Pialat manteve-se à distância do mais conhecido movimento do cinema francês.Mesmo porque cineastas como Godard, Truffaut, Chabrol começaram jovens (e, começar jovem era um dos traços de distinção da nouvelle vague), enquanto Pialat só veio a estrear em longa-metragem aos 43 anos. Infância Nua, de 1968, foi seu primeiro filme de longa-metragem -antes ele havia realizado apenas curtas, que estão no programa do CCBB. O projeto inicial era de um documentário sobre crianças da Assistência Pública francesa. Mas Pialat decidiu encaminhar-se para a ficção e criou o personagem de um garoto de 10 anos, criado por um casal um tanto idoso, e que mais tarde será enviado a uma casa de correção de menores infratores.

Há quem diga que que Infância Nua seria uma espécie de "resposta" ao semi-autobiográfico Os Incompreendidos, de François Truffaut, um dos primeiros longas da nouvelle vague e que, apresentado no Festival de Cannes de 1959 praticamente lançou o movimento. Ou, pelo menos, tornou-o conhecido. Pialat faz caminho diferente. Não gostava do cinema de Truffaut e o acusava de excessivamente "demonstrativo". Ele, Pialat, preferia deixar as coisas mais no ar e, as conclusões, por conta do espectador.

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Além disso, seu início de carreira como pintor faz de Pialat um diretor particularmente preocupado com a força das imagens. Filma com intensidade, como se quisesse deixar que as imagens falassem por si, tal como acontece na pintura. Seu âmbito temático - a infância abandonada, o artista atormentado, a crise de vocação, a falta de perspectiva da juventude, etc - mostram um diretor em busca das questões fundamentais do ser humano. Não procura amenidades, daí seu cinema sério, que privilegia personagens deslocados em seu meio social. O tratamento que dá a essas figuras é sempre formalmente muito consistente.

Ver essa obra em conjunto, inclusive alguns títulos menos conhecidos como Nós Não Envelheceremos Juntos, Aos Nossos Amores, Polícia, além dos seus curtas-metragens, é um privilégio. Pialat é o cineasta da consistência estética.

 

 

 

 

Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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