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Opinião|Novo Woody Allen: Cassandra's Dream

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Foto do author Luiz Zanin Oricchio
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Em Cassandra's Dream, Woody Allen faz um novo filme sobre a questão moral. De novo?, pode se perguntar qualquer pessoa que acompanha a sua obra. Sim, de novo. E daí? Ao invés de acusar Allen de se repetir, ou, ao menos, repetir temas e idéias, que tal encararmos esse retorno obsessivo como uma característica geral dos grandes artistas, que pintam, escrevem, esculpem os mesmos temas porque sabem que, por mais retrabalhados que sejam, jamais serão esgotados. Ninguém se queixa dos esboços repetidos que Picasso fez até chegar às formas definitivas de Guernica, por exemplo. Porque cobraríamos isso de Allen? Porque, de maneira equivocada, entendemos que o cinema só deve tratar de novidades?

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O fato é que os dilemas morais vêm preocupando desde sempre esse leitor de Dostoievski. Foi assim no já distante Crimes e Pecados (1989), retornando com força nessa sua fase londrina. O tema do crime e da culpa (ou ausência dela) comparece em Match Point (2005). Dá um descanso nesse divertimento chamado Scoop (2006) e retorna, com força total, neste Cassandra's Dream (2007).

A história é a de dois irmãos, Ian (Ewan McGregor) e Terry (Colin Farrell), que sobrevivem de maneira modesta. Gente comum. Ian ajuda o pai no pequeno restaurante da família. Terry sonha com a sorte grande em todo tipo de aposta, do pôquer à corrida de cães. Acontece que Terry aposta (e perde) mais do que pode. Ian se apaixona por uma jovem atriz (Hayley Atwell) e vê sua necessidade de dinheiro crescer. Enfim, dinheiro é mais uma vez o motor da história (assim como fora em Match Point, com o protagonista dividido entre um casamento por interesse e a paixão sensual por Scarlett Johansson).

Como em toda tragédia (porque Cassandra's Dream é dessa ordem), também é necessário que a força do destino se imponha. Um agente externo irá transformar essa mistura de ambição e desejo, própria da natureza humana, em um coquetel explosivo. Esse fator aparece na figura de um tio, o homem de negócios Howard (Tom Wilkinson), que pode fornecer o dinheiro que os jovens necessitam para resolver seus problemas. Mas exige uma coisa em troca, porque, afinal, uma mão lava outra, e negócios íntimos se resolvem assim, em família, pois laços de sangue tornam os acordos sagrados. Mesmo os acordos mais escabrosos.

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Tio Howard é o fator desencadeante. É quem acrescenta aquele grão de loucura que transforma os destinos de dois jovens tão agradáveis e normais. Mas a culpa é de Howard e sua oferta tentadora e imoral? Ou o crime já estava inscrito na dupla de irmãos, em sua verdade íntima? Vamos lembrar a frase de Machado de Assis, que tinha uma visão realista sobre a natureza humana: 'A ocasião faz o furto; o ladrão já nasce feito.' Ou podemos pensar que, sem Howard, Ian e Terry prosseguiriam em suas vidas medíocres e sem maiores tribulações? Woody Allen não cogita essa hipótese. Nem nós precisamos fazê-lo. Porque também é da vida que o acaso e outras inferências entrem no jogo para tecer os destinos das pessoas. E, vistos a posteriori, pareçam fazer parte da necessidade das coisas.

Se bem observarmos, em Match Point é o acaso que vai regendo as trajetórias das pessoas, a cada passo. A mesma coisa acontece em Cassandra's Dream. Nessa ordem moral oscilante, estudada por Allen filme após filme, a sorte e o azar entram como fatores determinantes. Pobre é a condição humana, que pensa reger seu próprio destino quando de fato é joguete de forças aleatórias. Na tragédia eram os deuses que jogavam com as vidas dos mortais, como se estas servissem apenas de divertimento, distração para o tédio da eternidade. Hoje, são pequenos acasos, uma bolinha de tênis que pode cair de um lado ou de outro da rede, um anel jogado para o rio, que pode, ou não, bater na amurada, cair na água e desaparecer para todo o sempre, ou ricochetear e permanecer na calçada - como acontece em Match Point. Ou surgir na figura de um tio bonachão, que poderá ser a solução de todos os problemas ou, pelo contrário, a perdição. É, no fim, uma meditação sobre o acaso, sobre a ética, mas também sobre a liberdade e o livre-arbítrio que Allen realiza nessas obras seguidas, e que se comentam entre si.

Desse modo, parece que Woody Allen seja um dos poucos diretores contemporâneos dispostos a fazer um cinema que se poderia chamar de 'filosófico' sem qualquer aviltamento ao termo. Usando uma técnica simples, sem grandes virtuosismos, a fotografia fria de Vilmos Zsigmond e a música reiterativa de Philip Glass, Allen alcança resultado contundente. Não por acaso, esses filmes, tidos como 'intelectuais demais', estão sendo rodados na Europa e não nos Estados Unidos. Mas, de qualquer modo, de um lado ou do outro do Atlântico, há cada vez menos gente disposta a discutir esses temas, na verdade tão antigos quanto a humanidade. Por sorte, existem ainda espectadores em quantidade suficiente para manter em atividade essa avis rara na fauna banal do cinema.

Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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