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Opinião|Noites de música, paixão e política

 

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Foto do author Luiz Zanin Oricchio
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Foi mágica a noite de abertura do festival de documentários É Tudo Verdade. Plateia compacta no Espaço Unibanco da rua Augusta para ver Uma Noite em 67, dos estreantes Renato Terra e Ricardo Calil. Grandes e merecidos aplausos no final.

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O filme é sobre o desfecho, em 21 de outubro de 1967, do III Festival da Record, no Teatro Paramount, rebatizado na época de Teatro Record Centro. Há quem diga que foi o festival dos festivais, o maior de todos. Foi o festival que consagrou Ponteio, de Edu Lobo e Capinam, como vencedor. Foi o festival de Chico Buarque e Roda Viva. Foi o festival da "violada" no público, aplicada por Sérgio Ricardo, que não suportou as vaias ao seu Beto Bom de Bola. Foi o festival de Caetano Veloso, com Alegria, Alegria, e de Gilberto Gil, com Domingo no Parque. Foi o festival da MPB "pura" contra a guitarra elétrica. Um Fla-Flu.

O filme faz uma excepcional prospecção de imagens da época e acerta ao preservar as apresentações completas dos concorrentes, trazendo de volta todo um clima da plateia. Clima incandescente, para dizer o mínimo.

Traz também as entrevistas dos concorrentes, feitas pelos apresentadores Randal Juliano e Cidinha Campos nos bastidores. Há cenas da plateia, que aplaudia de maneira frenética os favoritos e vaiava, impiedosa, quem não gostava.

Acerta ao entrevistar, no presente, alguns dos protagonistas da época: Sérgio Ricardo, Caetano, Gil, Chico, Edu Lobo. São depoimentos preciosos, de reavaliação de um tempo quente e urgente e radical como aquele.

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O festival expressou, e o filme contempla esse fato, cisões musicais importantes: de um lado a música politizada e "pura" em seu nacionalismo de esquerda: Ponteio, Roda Viva. De outro, a abertura criativa para o pop com Domingo no Parque e Alegria, Alegria. A raiz brasileira x a mistura eletrônica com o rock. Naquele tempo era uma coisa ou outra.  Houve até uma passeata contra a guitarra elétrica, liderada por Elis Regina e da qual um constrangido Gilberto Gil participou.

O festival expressou também, mas nesse ponto o filme é menos incisivo, outra cisão que ocorria na sociedade brasileira entre o regime militar e a resistência a ele. O público dos festivais, pelo menos aquele que ia ao teatro, era, em sua maioria, universitário, de oposição ao regime. Canalizava (ou sublimava) sua energia nas canções que julgava melhor representar a sua luta, mesmo que os concorrentes não pudessem, de maneira maniqueísta, ser chamados como "reacionários", como conviria a uma luta entre o "bem e o mal". Edu ganhou porque Ponteio era mesmo ótima música, mas também porque continha uma "mensagem" revolucionária implícita em sua letra. Além disso, era nacionalista em seu arranjo e forma de expressão. Caetano e Gil não eram "entreguistas" em sua abertura para o pop. Mas não eram tão facilmente assimiláveis à "luta" como Edu e Vandré, por exemplo. Basta lembrar que, pouco tempo depois, Caetano e Gil foram presos e tiveram de seguir para o exílio.

Num festival seguinte, o III Festival da Canção, da Globo, a cisão ficaria ainda mais clara entre a engajada Prá não Dizer que não Falei de Flores, de Geraldo Vandré, e a linda canção do exílio Sabiá, de Chico Buarque e Tom Jobim. A música de Chico e Jobim podia ser ótima e sofisticada, e era tudo isso mesmo, mas a de Vandré, em seus dois acordes, converteu-se na "nossa Marselhesa", como bem a definiu Millôr Fernandes. Cresceu no seio do povo e passou a ser cantada em passeatas e atos públicos. Virou uma música de rua. Transformou-se num hino da resistência em tempos sombrios.

Os festivais, durante certo espaço de tempo, canalizaram paixões políticas expressas através da música. Tudo andava junto e nunca essa união entre cultura e política foi tão intensa. Foi um momento raro na história brasileira e os festivais, concebidos por empresários que queriam apenas garantir um bom show e ganhar dinheiro, se transformaram em outra coisa. Dá gosto reviver esse tempo, ainda que, no filme, talvez por receio de didatismo, essa ligação entre a arte e seu momento histórico não seja costurada por inteiro.

Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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