O cuidado com que foi analisado leva a crer que O Profeta tenha provocado na França reação semelhante à causada no Brasil por Cidade de Deus. Como se lembra, o filme de Fernando Meirelles dividiu a crítica brasileira, foi exibido fora de concurso em Cannes e, dada sua repercussão, ganhou fama mundial.
Como Cidade de Deus, O Profeta é um filme do qual se pode dizer quase tudo ? menos que deixa as pessoas indiferentes. Esbanja fluência narrativa, boas interpretações, cenas de impacto. Tem clima e uma excelente história. Seduz o espectador, o que leva a crer que também possui um subtexto poderoso. Mas há a questão da forma: uma das principais acusações que lhe faz os Cahiers é de ser expressão do desejo de Audiard de fazer "cinema americano". O engraçado é que, também aqui, o paralelo com Cidade de Deus pode ser feito. Não por acaso, um dos artigos elogiosos ao filme de Meirelles dizia que, por fim, o cinema brasileiro havia encontrado seu caminho ? ao fazer filmes que não fariam feio em Hollywood. Um primor de provincianismo.
Mas a questão, claro, não é essa. Há bons e maus filmes, europeus, americanos ou iranianos. E O Profeta, até por seu grau de sedução, parece tocar em pontos sensíveis do público. Mostra a ascensão de um pequeno marginal, Malik (Tahar Rahim) à condição de grande contraventor. No percurso, ele tem um mentor (Niels Arestrup), a quem obedece e depois destrona. Há um entrelaçamento familiar com a vida do crime ? com a família mafiosa, e depois com a família propriamente dita, na figura do companheiro que lhe deixa a missão de cuidar da viúva e do filho. Algo aí ecoa, vaza, do ambiente ítalo-americano de O Poderoso Chefão à realidade franco-árabe de O Profeta. São ressonâncias, não plágio ou imitação. Na intensidade dos gestos, no parricídio simbólico, na dialética entre violência e amizade, e mesmo em certo apelo místico, se jogam as apostas deste filme ambicioso de Audiard. Que ganha todas elas, com exceção da unanimidade crítica. Essa ninguém tem.
(Caderno 2, 18/6/10)