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Opinião|Mostra: Gomorra

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Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

Gomorra, de Matteo Garrone, é aquele tipo de filme que chega cercado de uma série de apelos externos. Em primeiro lugar, a sua origem, o livro homônimo de Roberto Saviano sobre as operações da Máfia napolitana, a Camorra. Tema indigesto. Em especial, para o escritor. Outro dia mesmo ficamos sabendo que Saviano está jurado de morte pela Camorra. A organização, como prova de espírito devoto, prometeu matá-lo "até o Natal". Provavelmente para não conspurcar a festa máxima da cristandade.

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Isto, quanto ao livro. O filme participou do Festival de Cannes e ganhou o Grande Prêmio do Júri. Junto com Il Divo, de Paolo Sorrentino, Gomorra apareceu para a crítica internacional como signo de renascimento do grande cinema italiano, este cinema que andava apresentando obras pouco mais que anódinas nos últimos anos. É também o escolhido para representar a Itália na competição do Oscar estrangeiro, cujos finalistas serão conhecidos dia 22 de janeiro. Enfim, um título badalado.

E isso sem que faça qualquer concessão ao público médio ou ao gosto (suposto conservador) da Academia de Hollywood. Gomorra é, todo ele, um filme na contramão. Trabalha com tema e subtema incisivos - a ação do crime organizado em Nápoles e a atração que esses criminosos exercem sobre a juventude. Talvez, por essa segunda característica, Gomorra tenha sido chamado, e não apenas por brasileiros, de "Cidade de Deus napolitano". Existe a aproximação. Mas o espectador que for conferir o filme italiano, verá que, estilisticamente, ele é muito diferente do de Fernando Meirelles.

É verdade que ambos tratam da criminalidade na juventude e na infância. Mas o fazem de maneira diferente, diria mesmo que oposta. Cidade de Deus é um trabalho muito mais comprometido com o prazer do espectador. Dá o seu recado sem abdicar de uma ginga, de um balanço, de uma agilidade narrativa e de um encanto fotográfico que fez com que parte da crítica mais sisuda torcesse o nariz para ele. "Cosmética da fome" foi o rótulo criado para defini-lo e a supostos congêneres que, segundo essa tese, estetizariam a miséria e a violência. Essa discussão já faz parte do passado.

Lembrá-la serve apenas para definir Gomorra pelo seu contraste com Cidade de Deus. Garrone procura empregar uma linguagem mais seca e o mais despojada possível para tratar do seu assunto. Não existe qualquer pretensão de "embelezar" um plano, uma cena, uma seqüência para torná-los mais agradáveis ou palatáveis ao espectador. Pelo contrário. O realismo é cru. Como se o diretor dissesse: "Vou tratar de um assunto desagradável, fruto da miséria, da indiferença social, da conivência política e não tenho nenhuma intenção de transformar esse coquetel de dissabores em algo ameno, em espetáculo para desfrute da boa consciência da classe média."

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Portanto, Gomorra é um filme a palo seco, como dizem os espanhóis. Sem acompanhamento de qualquer espécie: pouca ou nenhuma música, iluminação desglamourizada, paisagens áridas, buscando o reverso da Nápoles de cartão-postal. Porque é lá, nesse lugar de rostos e práticas que lembram mais os de um país subdesenvolvido que os de uma economia do Primeiro Mundo, que se mexem essas relações sociais tensas e violentas.

Um pouco à maneira coral (sem protagonista, dividindo-se a atenção entre vários personagens), Gomorra se distribui por várias histórias, episódios que comentam uma única e mesma realidade. O alfaiate que emprega seu talento na produção de grifes piratas, o chefão que paga as famílias dos presos, a mãe que será morta porque seu filho traiu a organização e, sobretudo, a dos dois rapazes que se encantam pelas armas e pelo poder que elas representam. Essa "vontade de potência" da juventude criminosa, tão bem expressa em Cidade de Deus, encontra a sua contrapartida em Gomorra. É talvez o que mais impressione no filme e o que mais incomode - no sentido positivo do termo.

Já tem sido dito que Gomorra, o filme, é uma adaptação apenas parcial do livro de Saviano. Não contém, por exemplo, toda a análise econômica da presença do crime organizado na Itália. E nem poderia. Concentra-se apenas na exteriorização desse poder e o faz explodir na tela, em imagens fortes, eloqüentes, que falam por si, sem qualquer necessidade de explicação.

(Caderno 2, 18/10/08)

Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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