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Opinião|Mostra de Gostoso 2019: a força de 'Sete Anos em Maio'

 

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Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Atualização:
 Foto: Estadão

 

São Miguel do Gostoso/RN

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Sete Anos em Maio, de Affonso Uchoa, é um filme impressionante. Um tríptico, em seus 42 minutos. Ficção? Documentário? Ninguém mais discute essas raças puras. Vivemos no hibridismo. Sete Anos começa pela encenação de um ato de violência policial, prossegue com o longo depoimento do protagonista, Rafael, e termina com a encenação de um jogo. 

Pode ser tudo muito lúdico, mas a realidade associada a essa construção é pra lá de trágica. Fala de uma juventude periférica, sem direito a nada, inclusive à vida. Rafael é um deles. Narra um caso terrível de violência policial, que o forçou a mudar-se para São Paulo, onde o esperava algo parecido, senão pior. Não se trata de apontar o dedo para ele, mas perguntar se ele desfruta das "oportunidades iguais para todos", prometidas pela farsa neoliberal. 

O cinema de Uchoa (também autor de A Vizinhança do Tigre e Arábia) é densamente político. Sabe o que quer, de onde vem e a quem se dirige. Mas não é político à moda antiga, digamos assim. Uchoa diz que mora no mesmo bairro dos seus personagens. Mas não é como eles. Teve oportunidades, tornou-se cineasta, viaja com seus filmes, conhece lugares e países diferentes. 

Fiz a ele essa pergunta, porque é algo que me inquieta. Uma velha pergunta, na verdade, que nada tem de original e nem resposta pronta: como falar do outro de classe - uma questão que permeia o livro fundamental de Jean-Claude Bernardet, Cineastas e Imagens do Povo. Com sua análise de estrutura, de ponto de vista, Bernardet revela o quanto de autoritário existe em documentários de fundo humanista, que retratam as classes populares como se soubessem o que é melhor para elas. O cineasta é o intelectual-padrão, o guia das massas na melhor tradição leninista. 

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O mundo mudou e mudou também no audiovisual. Se estamos longe de uma situação ideal, hoje, mais do que dez ou 15 anos atrás, há mais negros, mulheres, gays, indígenas e gente periférica por trás das câmeras. Ou em funções técnicas, ou escrevendo roteiros ou opinando sobre eles. O que, inevitavelmente altera o ponto de vista com que se retratam ou são retratados. 

A questão da linguagem se impõe de diversas maneiras em filmes como Sete Anos em Maio. Uma delas é no roteiro, que não é de ferro; ele se altera no contato com os sujeitos. Esses não são meros seres passivos, que irão representar a si mesmos sob as ordens de um diretor que sabe o que é melhor para eles. Interferem no resultado. O diretor não é como eles; mas está próximo deles. Qual a boa distância? Fica a questão em aberto. Mesmo porque o próprio Uchoa percebe que, nessa dialética entre o próximo e o distante, é a sua própria autoria que se vê questionada. 

Em todo caso, o filme exibe uma força toda particular. A narrativa em primeira pessoa de Rafael lembra a de Juninho, em Arábia, uma saga laboral toda contado em off. Nessas vozes não elaboradas, mas extremamente fluentes, que falam de si mesmas sem qualquer enfeite, reside essa força inusitada de gente que insiste em viver, amar, revoltar-se, apesar de ter sido programada para abaixar a cabeça e se conformar; ou, no limite, morrer. Essa afirmação de vida está no centro do projeto político desses filmes. 

 

Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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