PUBLICIDADE

Foto do(a) blog

Cinema, cultura & afins

Opinião|Memórias de Xangai

O título Memórias de Xangai parece dizer que a própria cidade evoca suas lembranças. É a impressão que temos com essa licença poética -a de que a gigantesca cidade chinesa, vista pelos olhos de Jia Zhang-ke é como um ser vivo, pulsante, vigoroso e sofredor.

Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

Sim, há os depoimentos das gentes de Xangai, 18 pessoas ao todo, de idades e profissões diferentes, escolhidas para representar não os milhões de cidadãos da cidade mas como suas camadas geológicas. Elas são testemunhas de um tempo, ou melhor, de vários tempos estratificados e que compõem afinal a memória viva da cidade.

PUBLICIDADE

Ao lado desses depoimentos, há a câmera de Zhang-ke, deslocando-se em lentos planos sequência e com enquadramentos nunca banais; simples, porém nunca óbvios, evitam clichês cinematográficos associados a megalópoles. Buscam o poético, isto é, o deslocamento, que pode estar numa rua popular, na demolição de um prédio, num arranha-céu. A cidade demole-se e reconstrói-se, expressando o que a China era e no que se tornou, uma potência mundial. Zhang-ke tem sido um dos críticos mais lúcidos do crescimento desordenado do seu país. Não é ingênuo, nem parece com apetite para a apologia do imobilismo. Apenas contabiliza perdas, inevitáveis.

Em Memórias de Xangai o registro é diferente. Zhang-ke flutua entre o presente e o passado. Vê o passado com os olhos do presente - mesmo porque não existe outra maneira de fazê-lo. Apreciá-lo, tentar interpretá-lo. E, para isso, usar ferramentas ao seu alcance. Uma delas é o próprio cinema, falando com mulheres que foram atrizes e evocando trechos de filmes de outrora. Outra pessoa fala: alguém que foi uma espécie de cicerone de Michelangelo Antonioni, quando ele lá esteve para rodar um documentário. O homem diz que protestou com o diretor italiano: "O senhor está filmando só as coisas ruins". Antonioni teria respondido que nada via de mau naquilo que registrava. E, de fato, quem conhece o documentário China sabe que é um filme amoroso e cheio de curiosidade sobre um país então praticamente desconhecido no Ocidente.

Acontece que o filme de Antonioni foi censurado na época da Revolução Cultural. O homem que serviu de cicerone teve problemas e foi acusado de traição. Muitas lembranças referem-se à essa época e, em especial, à chamada Gangue dos Quatro, liderada pela mulher de Mao, Chiang Ching. É como se a política e suas contingências se insinuassem sutilmente pelas frestas das Memórias de Xangai. Quem refaz o passado não pode ficar alheio a ela e, afinal, a memória de uma cidade é feita das marcas que a História nela produz. Está inscrita nas pessoas e em suas lembranças. Está nas pedras.

 

Publicidade

Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.