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Cinema, cultura & afins

Opinião|Melancolia

Por melhor que seja o seu home theater, um filme do porte de Melancolia sempre perde alguma coisa quando visto na tela menor. Ainda assim, mesmo sem ser numa requintada sala com tela grande e som Dolby perfeito, continua a ser uma experiência cinematográfica e tanto ver ou rever este filme, agora lançado em DVD pela Califórnia.

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Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

Melancolia provavelmente é um dos melhores lançamentos deste ano, talvez o melhor de todos. Acaba de ganhar o prêmio de melhor filme europeu de 2011, prova de que a besteira cometida por seu diretor, o falastrão Lars Von Trier em Cannes, quando disse que podia compreender Hitler, foi colocada em seu devido lugar. Que lugar? Na lata de lixo das inutilidades, desses frissons de momento de que são feitos muitas vezes os festivais de cinema, eventos nos quais cada vez menos o que importa de fato são os filmes.

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Enfim, vamos à obra, em si. Uma espécie de filme-síntese da obra de Von Trier, esse dinamarquês signatário do Dogma, que ficou conhecido com autor de Ondas do Destino, Dogville, Manderlay e Anticristo. Filmes que foram construindo uma obra política, intensa, distanciada de maneira brechtiana às vezes, exigente com o público até quase o limite do insuportável. Enfim, um cinema incontornável.

Melancolia é filme já de um mestre, porém em contínua evolução. O que virá depois desse apocalipse cinematográfico? Difícil prever. Mas Von Trier, fiel ao dogma da polêmica, avisa que será um filme pornográfico. Esperemos.

Em Melancolia o que se vê é um mergulho de cabeça em uma experiência intelectual e sensória, já no prólogo. As primeiras sequências soam como o prelúdio de uma ópera, que anuncia o que virá. Os atores fazem vezes de tableaux vivants, elementos protagônicos de quadros móveis, que dialogam com a pintura (uma delas é Caçadores na Neve, de Brueghel) e a música, o tema melódico que acompanhará os principais momentos do filme - Tristão e Isolada, de Richard Wagner.

Depois dessa introdução, o filme se desdobra em duas partes, um díptico cujas lâminas são intituladas com os nomes das duas irmãs - Justine (Kirsten Dunst) e Claire (Charlotte Gainsbourg). Irmãs de temperamentos opostos, sínteses também de disposições contrárias de estar no mundo.

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Na primeira parte do díptico, vemos Justine se preparando para um casamento suntuoso, realizado numa casa de campo. A linguagem estética, aqui, embora mais caprichada, parece a dos primeiros filmes do Dogma, em especial pela câmera na mão. A festa burguesa se prepara, enquanto a noiva, com tudo agora ao seu alcance, felicidade, emprego, promoção, marido novo e encantador, se prepara para arruinar a vida, peça por peça. Claire tenta impedi-la. Em vão. É uma demolição em regra que se anuncia. E não apenas no âmbito pessoal.

A segunda parte é a de Claire. Justine arruinou-se a tal ponto que precisa até ser alimentada na boca para sobreviver. Quem dela cuida é a irmã, seu oposto e espelho. O que Justine tem de desordenada, Claire tem de centrada. Há, no entanto, uma ameaça pairando, sob a forma de um enorme planeta, chamado Melancolia, que pode chocar-se com a Terra. Os cálculos dos cientistas dizem que tudo está sob controle, mas sabemos como são os cálculos e os cientistas.

A linguagem do filme muda nessa segunda parte. Torna-se intensa, suntuosa, grave à medida que a ameaça se aproxima e torna-se concreta. Neste ponto, há uma curiosa (porém compreensível) inversão. Justine, tão inadaptada para o mundo, parece serena e centrada para o que seria a iminência do fim. Claire, tão centrada e dentro dos parâmetros da normalidade, é o desespero em pessoa quando confrontada com a perspectiva da finitude de si mesma e do mundo que conhece. Faz sentido. Uma, de acordo com sua perspectiva, não tem mais nada a perder; a outra, pelo contrário, tem sólidos motivos para se apegar a uma vida que parece ameaçada. Melancolia afeta o eixo gravitacional da Terra e também das irmãs.

Que Von Trier dê o nome de Melancolia ao seu apocalipse não me parece gratuito. Já se chamou a depressão de mal do século. A nossa frágil felicidade, o nosso vão equilíbrio não sobrevivem sem o Prozac e sem o Rivotril. São os paraísos artificiais que garantem a contrapartida para o progresso tecnológico e a vida ultracompetitiva. Mas será isso a vida? Porém, Von Trier não fala nem de depressão, mas de melancolia, o termo ancestral da tristeza sem objeto, do sujeito perdido de si mesmo, descentrado de si de maneira irremediável. Se essa condição do ser sem esperança se agrava no mundo da anomia social e da ausência de transcendência, a melancolia terá esse efeito letal de um planeta bêbado, imprevisível, que vaga por um universo sem ordem. É mesmo de um fim de mundo literal e simbólico que este filme impressionante trata.

(Caderno 2)

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Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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