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Opinião|Linha de Passe

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Atualização:

Quatro filhos e uma mãe em luta para ficar à tona nesse mar bravio da cidade imensa, no qual impera a lei da sobrevivência do mais forte. Como não ver neste extraordinário Linha de Passe uma espécie de releitura, à brasileira, do clássico de Luchino Visconti Rocco e seus Irmãos? Pelo menos do ponto de vista temático, assim parece. Da mesma forma que a família Parondi vem do "paese" mediterrâneo e procura não ser devorada pela gélida Milão, Cleusa e filhos dão duro para não serem engolidas por uma São Paulo cada vez mais desumana.

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Mas se referência a Visconti existe nessa nova parceria da dupla Daniela Thomas-Walter Salles, ela é mais do que tudo conceitual. Assim como o nobre marxista italiano, também aqui se tem a luta do indivíduo despossuído em um ambiente hostil. E, da mesma forma que o culto Visconti não caía na armadilha fácil do determinismo vulgar, também os diretores brasileiros sabem que esse jogo se joga com muitas variáveis. Não está escrito que o "indivíduo é bom, a sociedade é que o corrompe", conforme sustentam os ingênuos. Mas também não se pensa que um meio mais ou menos favorável seja indiferente ao destino social do indivíduo. O que se precisa é entender quais as mediações pelas quais um caldo de cultura delimita as opções de um indivíduo e o prepara para seguir este ou aquele caminho. Assim, numa sociedade como a brasileira, e numa realidade particular como a paulistana, o que se deve estranhar não é que haja tantos criminosos, mas sim que existam tão poucos.

Desse modo, a luta de Cleuza (Sandra Corveloni) será manter seus quatro "meninos" no caminho do bem. Não é tarefa das mais fáceis. Moradores da periferia, eles são pobres, e têm sonhos como todo mundo. Reginaldo (Kaíque de Jesus Santos) busca o pai de maneira obsessiva. Dario (Vinícius de Oliveira) procura tornar-se jogador de futebol profissional. Dinho (José Geraldo Rodrigues) apóia-se na religião e torna-se evangélico. Denis é um motoboy bon vivant e, muito jovem, já é pai de um garoto.

Essas histórias dos filhos vão e vêm, se esbatem e se concentram na própria história da mãe, em interpretação inesquecível de Sandra Corveloni, que lhe valeu o prêmio de melhor atriz no Festival de Cannes. Como a mãe dos Parondi, ela também é um ponto de referência.

Mas, diferentemente da mamma sulista de Visconti, Cleuza é, também ela, uma das faces do problema. Tem suas próprias aspirações, e, portanto, mais desejos e mais conflitos do que uma matriarca vinda dos confins rurais da Itália 50 ou 60 anos atrás. Por isso, sua posição de referência será mais árdua, mais trabalhosa, porque ela mesma faz parte da equação não resolvida das incógnitas sociais brasileiras. Tem a sua vida pessoal e ela também é complicada. Cleuza é exemplo de força; porém, tem de usar parte dessa força para si mesma e não apenas em benefício dos filhos.

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E essa talvez seja a melhor dinâmica encontrada pelo filme de Daniela e Walter - o ir e vir, sem costuras aparentes, entre a psicologia dos personagens e o espaço social que eles encontram, ou não, para desenvolver seus desejos. Vai e vem entre o indivíduo e aquilo que o cerca. Entre o seu livre-arbítrio e aquilo que vai além dele. É entre esses dois pontos que se joga o jogo de todos - da mãe, e de cada um dos filhos. Ela funciona como pêndulo. Mas, como todo pêndulo, também é móvel, oscilante e, em seu caso, balança entre a fragilidade e a força.

Linha de Passe se vale de uma proposta realista para escavar nessa que é uma grande incógnita da periferia, pelo menos do ponto de vista dos mais privilegiados - existe uma pulsão jovem e muito forte em ação, e ela não se limita à região dos Jardins ou à Zona Sul carioca. Quem não entender isso, não vai entender nada. Ela vai além do determinismo econômico e pode ajudar a entender tanto a opção pela criminalidade como por outros caminhos socialmente aceitos.

Linha de Passe não é nem pessimista nem cai no outro oposto, a facilidade da redenção. Enfrenta seu desafio com toda a sobriedade e também com emoção: as pessoas não quem apenas pão. Querem pão, sonho, prazer, respeito. Dito assim parece fácil de entender. Mas não é.

Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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