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Opinião|Lições de História

Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

Não me perguntem a razão, mas venho lendo muitos livros sobre a ascensão do nazismo nos anos 1930 na Alemanha. 

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Recomendo dois, dos mais interessantes, ambos: Hammerstein ou a Obstinação, de Hans Magnus Enzensberger (Cia das Letras) e A Ordem do Dia, de Éric Vuillard (TusQuets). 

Ambos são livros de História, porém heterodoxos. Isto é, seus autores usam de técnicas literárias ao escrever. Embora se mantenham, como os historiadores, presos aos fatos, são livres para voar.  

Enzensberger traz para o título do livro o nome do general Kurt von Hammerstein, comandante do exército alemão antes da chegada de Hitler.

Hammerstein era um tipo liberal, que acreditava na autodeterminação - tanto assim que suas três filhas tornaram-se comunistas. Era um nobre de ideias livres, que se sentia constrangido com a vulgaridade de Adolf Hitler, o tipo estranho que ameaçava chegar ao poder. Como de fato chegou, provocando uma devastadora guerra mundial e a ruína do seu país. 

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Acontece que o momento histórico no qual vivia era propício à aparição de demagogos. Derrotada na guerra, a Alemanha vivia tempos muito difíceis. Humilhada e economicamente esmagada pelo Tratado de Versalhes, vivendo o caos social e a polarização entre as pessoas, viu-se mergulhada num turbilhão aparentemente sem recuo possível. Era uma época de extremos, no qual o "meio termo" não tinha vez. Leiam esse trecho: 

"Os políticos do meio-termo não tinham como se manter no páreo. Pareciam pálidos e desorientados. Eram completamente incapazes de mobilizar os temores, os ressentimentos, a admiração e a energia destrutiva das massas. Também por isso todos eles, sem exceção, subestimaram Hitler, melhor que todos nesse quesito. No fim, não restou à classe política outra coisa senão oscilar entre o pânico e a paralisia."  

Enzensberger relata uma conversa entre dois outros generais (Schleicher e von Eberhardt) que bem define o clima no Alto Comando durante o processo de ascensão do futuro Füher. "O que você acha desse Hitler?", pergunta Schleicher. "Embora muito do que ele diz seja inaceitável, não há maneira de contornar um homem que tem o apoio das grandes massas", responde Eberhardt. "O que eu vou fazer com esse psicopata?", teria respondido Schleicher, major-general e, àquela altura, um dos políticos mais influentes do país. Menos de um ano depois dessa conversa, Hitler assumia o poder na Alemanha. 

 Boa parte da classe dominante alemã sabia dos perigos de levar um desequilibrado ao governo, mas intimidava-se de ir contra alguém que expressava os confusos anseios daquela época. Além disso, julgavam que Hitler fosse tão primitivo que não seria difícil enquadrá-lo, caso chegasse ao poder. 

Já o próprio Hitler não enganava ninguém. Em fevereiro de 1933 reuniu-se com a elite militar na casa de Hammerstein. Nada escondeu. Não houve ata oficial da reunião, mas apenas uma transcrição informal (copiada por uma das filhas de Hammerstein e rapidamente repassada a Moscou).  Seus objetivos eram liquidar de vez a ameaça comunista, destruir os indesejáveis internos (judeus, esquerdistas, artistas decadentes, etc) e expandir o território alemão para dinamizar a economia. Objetivos que, somados, equivaliam a uma promessa de guerra, externa e interna. Teria sido possível detê-lo? Essa é a questão do livro - deixada em aberto. 

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De certa forma, Uma Reunião Secreta complementa o livro de Enzensberger. Fala da reunião entre os principais empresários alemães (marcas como Krupp, Agfa, Siemens, Bayer, Opel, Allianz, Telefunken, etc.) recebidos no Reichstag, o Parlamento alemão para discutir a próxima eleição. Quem os recepciona primeiro é Hermann Goering. Ele promete que, caso o partido nazista consiga a maioria, essas eleições serão as últimas pelos próximos dez anos. "Talvez pelos próximos cem anos", acrescenta, deliciado com a própria piada. Depois desse começo bem humorado, entra no salão o novo chanceler, Adolf Hitler em pessoa. E expõe os planos: 

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"O cerne da proposta se resumia a isto: era preciso acabar com um regime fraco, afastar a ameaça comunista, suprimir os sindicatos e permitir que cada patrão fosse um Füher em sua empresa". 

Para que essa maravilhosa situação se tornasse realidade, o empresariado ali presente estava convidado a abrir a bolsa e contribuir para o sucesso do nacional-socialismo nas eleições de 5 de março. Consta que Gustav Krupp puxou a fila e doou um milhão de marcos ao partido nazista.

O segundo pólo do livro é a anexação da Áustria, o chamado Anschluss, a ampliação do espaço vital de que a Alemanha necessitava para se desenvolver. Hitler e as tropas alemãs foram recebidos em festa pelos invadidos. Houve um referendo na Áustria para avaliar a invasão do país. "Quase não houve voz discordante. Noventa e nove vírgula setenta e cinco por cento dos austríacos votaram pela anexação ao Reich". 

Consta que, em 1944, com a guerra perdida, o velho Krupp, já senil, estava reunido com a família na mansão da Vila Hügel, que em breve teria de abandonar com a chegada iminente dos Aliados e dos soviéticos. Pálido, apontou o dedo magro para uma parte do salão imerso nas sombras e perguntou, apavorado: "Mas quem são todas essas pessoas? 

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"E o que ele viu, o que se ergueu lentamente da sombra, eram dezenas de milhares de cadáveres, os trabalhadores forçados, aqueles que a SS tinha fornecido para suas fábricas. Eles saíam do nada. Durante anos ele tinha alugado deportados em Buchenwald, em Flossenbürg, em Ravensbrück, em Sachsenhausen, em Auschwitz e em muitos outros campos." 

São pequenas lições da História. Hegel dizia que a única lição da História é que não aprendemos nada com as lições da História. Será? 

Termino com uma citação de Walter Benjamin, ele próprio uma vítima do nazismo: 

Angelus Novus, de Paul Klee Foto: Estadão

"Há um quadro de Klee que se chama Angelus Novus. Representa um anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos progresso."

 

Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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