E resistiu bem ao tempo justamente porque é um clássico, no sentido que Italo Calvino dá a este termo: uma obra que nunca deixa de dizer a sua mensagem. Retornamos a ela e sempre vemos algo novo. Tem sempre algo a dizer tanto sobre o tempo em que foi feita como sobre o tempo atual. Plana sobre a cronologia sob a forma de uma paradoxal atemporalidade - é de todos os tempos e de nenhum deles, exclusivamente.
Kubrick se inspira no livro de Anthony Burgess para seu filme de 1971. Trata-se de uma estranha distopia social, que fala de um grupo de delinquentes liderado por certo Alex (Malcolm McDowell). No desenho estético apurado de Kubrick, Alex é um tanto andrógino. Pelo efeito de maquiagem, metade do seu rosto é masculina, a outra metade feminina. Brutal, tem gosto apurado - é ouvinte de Beethoven, em especial da Ode à Alegria, o 4.º movimento da 9.ª Sinfonia, um dos momentos mais altos da música ocidental.
Com seu perfeccionismo, Kubrick alterna com maestria os planos do grotesco e do sublime. E nos prepara para a grande questão de fundo, que liga o filme aos nossos dias: a brutalidade dos delinquentes pode ser combatida com igual brutalidade pelo Estado? Como a sociedade pode se defender da violência sem que ela própria institucionalize a violência? São perguntas sem respostas fáceis, que fazemos sempre que nos sentimos ameaçados - como acontece neste preciso momento em que se discute a questão da maioridade penal.
Na distopia imaginada por Burgess e recriada por Kubrick, são técnicas behavioristas bastante primitivas as que são empregadas para "curar" o delinquente Alex, fazendo com que seu gosto musical volte-se contra ele próprio. Qual o preço a pagar nesse procedimento? Esta é a pergunta que não quer calar e ressoa, mesmo após o término do filme, na cabeça do espectador.
Tudo isso é intrigante, perturbador, e Kubrick, pelo brilho de sua direção, não deixa de nos jogar de um lado para outro. Ora fazendo com que nos identifiquemos com Alex, ora jogando com a nossa repulsa em relação a ele, Kubrick nos nega qualquer porto seguro. Melhor assim: nos obriga a pensar. E a sentir. Porque Laranja Mecânica é uma experiência tanto intelectual quanto sensorial.