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Cinema, cultura & afins

Opinião|J. Edgard

 

Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

J. Edgard Hoover foi um personagem para lá de controverso na história dos Estados Unidos. Construindo e presidindo o FBI durante 40 anos, até fazer do "Bureau"a potência que é hoje, Hoover tornou-se um dos homens mais poderosos dos Estados Unidos ao longo de décadas. Alguns diriam que era o mais poderoso, mais do que alguns presidentes. Anticomunista feroz, não tinha escrúpulos em acumular provas contra adversários e usá-las na hora adequada. Se não havia fatos, ele os forjava. Detestado pelos Kennedy, tentou intimidar até mesmo o reverendo Martin Luther King. Nixon não podia vê-lo pela frente. Mas, em especial durante a Guerra Fria, boa parte da opinião pública americana comprava a ideia de segurança que Hoover vendeu durante tanto tempo - a de que o preço da liberdade era não apenas a eterna vigilância, mas o combate sem trégua contra o inimigo interno. Esse é o difícil personagem retratado por Clint Eastwood em J. Edgard, seu novo filme.

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Quem encarna o personagem, de maneira brilhante e sob maquiagem pesada, é Leonardo DiCaprio, ator que já provou algumas vezes ser mais que um rosto bonito. Parece gostar de experiências cinematográficas de risco e de personagens difíceis, como quando viveu o excêntrico milionário Howard Hughes em O Aviador, de Martin Scorsese.

De certa, forma, colocar-se na pele de Hughes funcionou para DiCaprio como laboratório para viver Hoover. São imersões no que o ser humano poderoso pode ter de estranho. Ele próprio se ofereceu, quando soube que Clint estava pensando em retratar na tela a vida do chefão do FBI. O diretor não hesitou em aceitá-lo para o papel. Acertou em cheio. O DiCaprio que se vê no cinema parece talhado para interpretar um tipo sombrio, complicado, cheio de nuances.

Como saiu esse retrato de Hoover pintado por Clint e encarnado por DiCaprio? Como o de alguém traumatizado pelos atentados de Washington, de 1919 (que culminaram com a expulsão da anarquista Emma Goldman do país), fascinado pela mãe (em grande atuação de Judi Dench) e incapaz de assumir a própria sexualidade. Alguém com mania de pesquisa e catalogação, que começa por instituir um eficiente sistema para localizar livros em uma biblioteca e termina por montar um arquivo de pessoas abrangendo toda a nação. Isso num tempo em que o computador era apenas uma fantasia da ficção científica.

Essa obsessão por controle parece um dos pontos-chave para compreender o personagem proposto por Clint. Se a sua vida pessoal e amorosa é um caos, Hoover tenta impor ao país uma ordem absoluta, que não contempla espaço para dissidências ou surpresas. Claro, a segurança total não passa de delírio e quem se submete a essa ilusão mostra-se disposto a sacrificar parcelas enormes da sua liberdade para tentar consegui-la. Hábil manipulador do sentimento do medo, Hoover manteve-se no poder até a morte. Dirigiu o FBI de 1924 a 1972. Mas não foi feliz. É, pelo menos, o que sustenta o notável filme de Clint Eastwood.

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(Continuação)

Para contar a sua história, Clint monta um dispositivo narrativo confortável. Hoover, já velho, dita suas memórias a um estagiário do FBI. Desse modo, o filme pode alternar vários tempos da narrativa, indo do personagem idoso, que faz o balanço de sua carreira e vida, ao iniciante tímido, porém muito ambicioso, que revoluciona os procedimentos policiais de sua época.

Para se ter ideia das inovações que promoveu, basta lembrar que a prática de manter um arquivo de impressões digitais, hoje corriqueira, foi introduzida por Hoover sob o olhar cético dos colegas mais velhos. Foi ele também quem introduziu a prática de escutas clandestinas com a finalidade de acumular provas não apenas contra tipos suspeitos, mas contra possíveis adversários políticos.

Vitórias e derrotas se sucedem, sob o olhar do espectador. O J. Edgard Hoover que acumula poder por seu combate contra os gângsteres do tempo da Lei Seca é o mesmo que fracassa no sequestro do filho de Charles Lindbergh (o aviador que realizou a travessia aérea obre o Atlântico, da Europa aos Estados Unidos), um dos casos mais rumoroso da época. Captura o suposto criminoso, mas não é capaz de salvar a vida da criança. Nesse ponto, a narrativa ficcional é enriquecida com cenas de arquivo da época.

A dedicação de Hoover ao trabalho tem a contrapartida na pobreza e ambivalência da sua vida amorosa, com a desastrada tentativa de aproximação com a mulher que depois se tornaria sua secretária de confiança, Helen Gandy (Naomi Watts). E, em especial, a admiração que nutre pelo classudo colega Clyde Tolson (Armie Hammer), num relacionamento que avança para além das fronteiras profissionais. Aliás, uma das sequências mais fortes do filme é a cena de ciúmes entre os dois, quando Hoover anuncia que pretende se casar com a atriz Dorothy Lamour com a finalidade de compor a figura de pai de família completo e socialmente aceitável aos olhos dos americanos.

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Outra, é quando a dupla de amigos, já envelhecida, toma o café da manhã. Tolson e Hoover comem seus ovos cozidos e um implica com o outro. Como faria um velho casal. Tolson sofrera um AVC e falava com dificuldade. Fora atingido justamente naquilo que Hoover mais admirava nele, a nobreza de sua fala, associada à classe social superior e a uma educação de elite. A sutileza dessa cena diz muito sobre a natureza do relacionamento entre Hoover e Tolson.

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Desse modo, a reconstrução da vida de J. Edgard Hoover terá muito de revelação e muito de farsa, a começar pelo fato de ser ele o narrador das próprias memórias e, portanto, uma testemunha permanentemente sob suspeita. Cria sua verdade particular, mas será desmentido aqui e ali pelos fatos expostos e por seu próprio parceiro, Tolson, o primeiro a lhe jogar na cara a tentativa canhestra de embelezar sua biografia.

Tudo é ambiguidade nesse filme tão notável quanto incômodo, o que pode explicar o fato de ter sido solenemente ignorado pelo Oscar. Não recebeu sequer uma indicação. Sintoma, talvez, de que possa ter tocado alguma ferida incômoda na memória histórica do país. O silêncio do Oscar pode bem ser uma homenagem indireta a Clint e a seu filme.

 

 

 

Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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