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Cinema, cultura & afins

Opinião|Indefinição entre real e ficção

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Foto do author Luiz Zanin Oricchio
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Ano passado, Jogo de Cena, de Eduardo Coutinho, levantou um debate provocativo sobre a rígida distinção entre filmes de ficção e documentário. Afinal, estávamos diante do quê? Coutinho entrevistou uma série de mulheres, ouviu suas histórias de vida e fez com que elas as revivessem diante da câmera. Algumas atrizes famosas como Marília Pêra, Fernanda Torres e Andréa Beltrão foram convidadas para "interpretar" o que as convidadas haviam relatado. Mas no filme há atrizes menos conhecidas, que poderiam ser confundidas pelo público com as personagens reais. Além disso, as atrizes, ao interpretar as histórias que haviam ouvido, acrescentavam a elas suas próprias experiências. Em alguns casos, "sentiam" mais as histórias do que as pessoas que as haviam vivido. Então, até onde vai o real e onde começa a ficção?

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A discussão é antiga. Coutinho apenas aprofundou essa crise de certezas em divisão tão evidente. Flaherty fazia seus esquimós encenarem em Nanouk, clássico do gênero, de 1922. Mesmo o Aruanda (1960), de Linduarte Noronha, influente na estética do Cinema Novo, teve seqüências encenadas, fato que nunca foi discutido ao longo de décadas. Afinal, Aruanda era tido como protótipo do registro do real bruto, mas as seqüências iniciais "mostram" os personagens chegando à Serra do Talhado para formar seu quilombo...no século 19. Em artigo publicado no Cultura (Aruanda como ?objeto mental?, 18/2/2007), Jean-Claude Bernardet refere-se a um debate sobre o filme de Linduarte Noronha ocorrido em João Pessoa. Ao afirmar que Aruanda se valia de recursos ficcionais, Jean-Claude viu o filme ser defendido com ardor - como se estivesse sendo atacado, e sua pureza, como documentário marco do cinema nacional, fosse desse modo conspurcada.

O mesmo Jean-Claude, autor de livro sobre o documentário Cineastas e Imagens do Povo, serviu de protagonista para mais um embate nessa seara. Protagonista no sentido próprio, pois ele é o personagem principal de FilmeFobia, de Kiko Goifman, vencedor do Festival de Brasília. Esse filme causou a maior polêmica do festival. E não apenas porque mostrava cenas de fóbicos sendo submetidos pelo cineasta interpretado por Jean-Claude (ele ganhou a estatueta de melhor ator) ao contato com os objetos do seu medo. Provocou discussão, principalmente, porque se ofereceu como uma espécie de "objeto cinematográfico não-identificado". Nem ficcional nem documental. E nem algo entre os dois, sequer um híbrido, cruzamento de gênero, como se costuma dizer. Jean-Claude defendeu, em debate, que essas categorias históricas do cinema haviam se tornado obsoletas.

Sua intervenção merece ser citada: "Acho que a gente deve fazer um esforço para abolir as palavras ficção e documentário, ou mesmo falar numa mistura entre os dois. FilmeFobia se esforça para descobrir novas formas de narrativa na atual sociedade. Nem mesmo diria que é metalinguagem, um termo que ainda define algo que sobra da relação com a narrativa clássica. Metalinguagem é algo ainda a ser superado. É um vestígio. Qual o traço estético fundamental da nossa contemporaneidade? Trabalhamos numa área estética à qual pertencem obras diversas, com o mesmo traço: o Big Brother, fato estético da maior importância, Santiago (de João Moreira Salles), Jogo de Cena (de Eduardo Coutinho), FilmeFobia, etc. Estamos todos trabalhando dentro da mesma esfera. E tem tudo a ver com o Big Brother. Somos contemporâneos. É a espetacularização da pessoa. Seja a moça que quer ficar famosa no Big Brother ou eu no FilmeFobia. Construímos uma pessoa espetacularizada, destinada para o espetáculo. Filmefobia tem a ver com a perda da subjetividade, da intimidade, da necessidade de nos gerarmos como forma de espetáculo. Eu fiz isso na literatura, na crítica, e em outros filmes."

Essa discussão parece ter fôlego longo. Mesmo porque existem teóricos, como Fernão Ramos (Afinal, o Que É mesmo o Documentário?, Senac, 2008) que falam em "fronteiras que não se apagam" e delimitam os dois gêneros, ainda que de forma problemática. Ninguém ainda tem a palavra final.

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(Cultura, 14/12/08)

Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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