Foto do(a) blog

Cinema, cultura & afins

Opinião|Import Export

Import Export, de Ulrich Seidl, é um filme sobre a globalização, mas privilegia o ponto de vista de quem se dá mal. Quer dizer, da imensa maioria das pessoas. É sobre gente que vai de um lado para outro na Europa, em busca das tais "condições melhores de vida". Quer dizer: vão atrás de dinheiro. O que faz a diferença entre a imigração contemporânea e os fluxos migratórios do passado? Uma hipótese: antes, as pessoas mudavam de um país para outro e se fixavam em seu destino. A mudança era tão traumática quanto agora, mas havia desejo de deitar raízes e estabelecer-se numa nova pátria. Hoje a própria noção de pátria já constitui um problema para quem gosta de definições simples. Além disso, as migrações parecem mais frequentes e transitórias. Chega-se a um país e, se as coisas não dão certo, tenta-se outro e assim por diante. A vida tornou-se mais nômade, sem raízes.

PUBLICIDADE

Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

São assim os personagens de Import Export. Dois, em especial. A ucraniana Olga (Ekateryna Rak), que é enfermeira e vai parar na Áustria. De faxineira, passa pela indústria pornô e termina como atendente de hospital geriátrico. O lado B da história: Pauli (Paul Hoffman) é um jovem austríaco que trabalha como segurança, perde o emprego e vai para a Ucrânia, em companhia do padrasto, para instalar máquinas caça-níqueis. Como o diretor é austríaco, indica no título a perspectiva dessa via de duas mãos - a Áustria "importa" estrangeiros e "exporta" austríacos. Assim o mundo roda.

PUBLICIDADE

A terminologia comercial do título também não é gratuita. Quer dizer que os seres humanos que andam para lá e para cá equivalem a mercadorias que atravessam fronteiras. O valor de uso é realçado. Olga submete-se a tudo para sobreviver. De seu lado, o padrasto de Pauli procura mostrar a ele que o dinheiro é só o que interessa, a única fonte de poder real no mundo de hoje. A "pedagogia" consiste em humilhar uma prostituta na frente do enteado para mostrar quem é que manda naquela relação.

Import Export é um filme bruto. Isso é apenas constatação, não um juízo de valor. A brutalidade faz parte do seu projeto, da sua ideia original, da visão de mundo do diretor. Não existe qualquer atenuante na maneira como as imagens são mostradas, no jeito como os planos são construídos, na iluminação empregada. Tudo é explícito, grosseiro. Os nus são ginecológicos e tão eróticos quanto um exame de colo de útero. O sexo é mecânico e vulgar, mediado pelo dinheiro e numa relação de poder entre partes desiguais. Um compra, a outra vende. Como se o sofrimento dos corpos fosse a melhor metáfora de um mundo disfuncional.

Pode-se dizer que são cenas realistas, apenas isso. Mas existe um realismo exacerbado, um naturalismo apelativo que age apenas no plano do choque e do mal-estar. Nesse sentido vão também filmagens no hospital geriátrico, visão sem atenuantes daquilo que já foi chamado de o "naufrágio da velhice". Desse naufrágio, nada é poupado ao espectador, nem os detalhes escatológicos. É a vida, pode-se dizer. Sim, mas aqui é a vida sem piedade. Quer dizer, uma tragédia, um mundo em que lobo come lobo, como em Hobbes.

Nada do que se vê parece inverossímil. Pelo contrário, tudo é crível, como se o cineasta dissesse: "A realidade é assim mesmo, gostem ou não; e, sendo assim, podem nela chafurdar se o quiserem; quanto a mim, observo tudo, impassível, do alto." É o ponto de vista de um entomologista, semelhante ao de um filme anterior de Seidl, Hundstage (algo como Dias de Cão), que participou do Festival de Veneza de 2001. Na época, ficou a mesma sensação de agora - politicamente ambíguo, não se sabe se Seidl denuncia ou frui a miséria humana.

Publicidade

(Caderno 2, 8/5/09)

Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.